Comissão da Verdade da Democracia: primeira audiência debate crimes de maio de 2006

Comissão da Verdade da Democracia: primeira audiência debate crimes de maio de 2006

"A audiência só terá eficiência se nos debruçarmos perante o Estado opressor e exterminador do povo pobre, preto e periférico”, diz Débora, do movimento Mães de Maio

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Tempo de leitura: 7 minutos

Da Agência Brasil

A Comissão da Verdade da Democracia de São Paulo promoveu, na tarde de hoje (21), a primeira audiência pública para discutir os crimes de maio 2006, no estado, quando 493 civis e 59 agentes públicos foram mortos violentamente durante confrontos entre a polícia e membros da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Esta é a primeira comissão do país a investigar crimes cometidos pelo Estado na democracia.

“A audiência é um passo importante, mas não é um passo garantido. Ela só terá eficiência se nos debruçarmos severamente perante o Estado opressor e exterminador do povo pobre, preto e periférico”, disse Débora Maria da Silva, coordenadora do movimento Mães de Maio, um dos grupos que pediu a criação da comissão e que também dá nome à comissão.

A intenção, segundo Débora, é apurar a verdade sobre os crimes de maio. “No Brasil, é corriqueiro não se contar a verdadeira história, tendo em vista que a ditadura nunca foi passada a limpo. A democracia continua exterminando pobres e negros periféricos e fazendo o desaparecimento forçado. Pretendemos esclarecer os crimes que não foram esclarecidos e os crimes de maio continuados. As vidas de nossos filhos foram tiradas e não temos resposta para isso. O país tem o dever de nos dar uma resposta”, ressaltou Débora, que perdeu um filho durante os crimes de maio.

Para José Filho, pesquisador da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a consequência dos crimes de maio de 2006 foram outras chacinas, entre elas a de junho de 2012, que provocou a morte de 106 policias e outros 306 civis no estado. “A impunidade e a falta de reconhecimento do Poder Público é o que tem gerado a trajetória dos crimes de maio até hoje”, concluiu.

A audiência foi acompanhada pela presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Eugenia Gonzaga. O número de pessoas desaparecidas nessa época não é conhecido.

“É relevante a criação da comissão, porque demonstra que há continuidade nas graves lesões praticadas pelas forças de segurança. Os equipamentos de segurança pública continuam adotando o mesmo método de fazer desaparecer pessoas que não lhe interessam”, disse Eugenia.

Segundo ela, a prática continua ocorrendo no país por causa da impunidade. “O Brasil já deveria ter votado uma lei sobre desaparecimento forçado. Até hoje trabalhamos nos casos de crimes da ditadura, com convenções internacionais cuja aceitação é muito difícil por parte do Judiciário brasileiro. Há uma resistência muito grande por parte do Congresso e demais setores em se tratar da questão de desaparecimento.”

Para Eugênia, a criação da comissão deve impulsionar a criação de outras comissões estaduais e setoriais no país, a exemplo do que ocorreu com a Comissão Nacional da Verdade. “Essas práticas disseminadas de desaparecimento não acontecem apenas em um lugar, e não é possível que uma comissão só dê conta de atingir as peculiaridades de cada local”, acrescentou.

A comissão foi instalada no dia 20 de fevereiro, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), com o objetivo de apurar violações cometidas pelo Estado brasileiro após a ditadura militar. A comissão foi criada no interior da Comissão de Direitos Humanos da Alesp e terá apoios técnicos da Comissão de Anistia, que contratou dois consultores para realizar as pesquisas, e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A intenção é ouvir parentes de mortos e de vítimas de desaparecimentos forçados ocorridos em maio de 2006, além de policiais acusados pelos crimes. Um dos primeiros a prestar depoimento hoje foi João Inocencio Correia de Freitas, que teve o filho, Mateus Andrade de Freitas, assassinado no dia 17 de maio em Santos (SP).

Mateus, que não tinha passagem pela polícia e nenhum envolvimento com crime, foi à escola nesse dia com um amigo, mas nenhum deles sabia que a escola estava sob toque de recolher. Ambos foram mortos por pessoas encapuzadas quando voltavam da escola. O laudo revela que Mateus morreu por dívida envolvendo drogas.

“Como alguém cobraria uma dívida de droga se meu filho deveria estar na escola naquela hora? Se eles [credores] matam a pessoa que deve, cobram a dívida depois dos pais. Mas não ocorreu nada disso. A polícia não investigou”, afirmou Freitas durante o depoimento.

“Meu filho tinha prova e resolveu ir para a escola. Ele morreu entre 20h30 e 21h, hora em que deveria estar na aula. [Ele e o amigo] foram mortos na rua [de sua casa]. Passou um grupo de extermínio, que matou os dois. Escutamos os tiros. Corri e vi o amigo do meu filho morto.”

De acordo com a comissão, as investigações sobre execuções e desaparecimentos neste período foram quase todas arquivadas sem os devidos esclarecimentos e responsabilizações. Até hoje, segundo Débora, apenas um policial foi condenado. Em julho do ano passado, o policial militar Alexandre André Pereira da Silva foi condenado pela morte de três jovens em 2006.

Silva foi condenado, por homicídio qualificado, a 36 anos de prisão, em regime fechado e perda de cargo público pelas mortes de Murilo de Moraes Ferreira, Felipe Vasti Santos de Oliveira e Marcelo Heyd Meres. Os três jovens estavam conversando em uma esquina do Jardim Brasil, na zona norte da capital paulista, quando homens em motocicletas passaram atirando. O réu poderá recorrer da decisão em liberdade.

De acordo com o defensor público Pedro Gilberti, que examinou 39 laudos do Instituto Médico Legal (IML) com a inscrição “resistência seguida de morte”, “ficou evidente que, pela característica dos tiros, houve execução”.

“Em todos esses casos, as situações eram iguais: disparos de cima para baixo, concentrados em regiões letais do corpo tal como cabeça e abdômen. Os locais dos homicídios foram todos desfeitos. Percebemos que não haviam testemunhas. Embora eu provasse a materialidade do homicídio, não conseguia comprovar a autoria”, acrescentou.

Para o ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neto, mortes em confrontos com a polícia continuam existindo até hoje em São Paulo. Somente no início deste ano, entre janeiro e ontem, ocorreram 154 mortes em confrontos. “É uma situação de estarrecer qualquer cidadão de bom senso.”

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