Por Thiago Borges. Revisão: Aline Rodrigues. Artes: Rafael Cristiano
Glabia Soraia Andrade Silva, de 45 anos, confia na ciência. Mesmo assim, a família dela está com a vacinação atrasada. O filho mais novo, de 9 anos, tem asma e, por isso, a mãe ficou receosa de que ele se infectasse na ida à unidade básica de saúde (UBS) em plena pandemia. Hoje, o caçula e a filha do meio, de 16, precisam atualizar a caderneta. Entre as pendências, estão as proteções contra gripe, covid-19 e HPV.
“No meu caso, eu não fiquei com medo da vacinação em si, mas da quantidade de pessoas circulando e que poderiam transmitir outros vírus”, garante Glabia, que mora na periferia da zona Noroeste de São Paulo. Profissionais de saúde do posto que abrange a casa dela já mandaram mensagens pelo whatsapp convocando a educadora, que pretende voltar à UBS o quanto antes.
O caso de Glabia não é isolado.
Na capital paulista como um todo, a maioria das vacinas previstas na cobertura básica está com taxas abaixo da meta de imunização. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura de São Paulo, no segundo trimestre de 2023 apenas a BCG (que protege contra a tuberculose) atingiu o objetivo de imunizar mais de 90% do público-alvo. Confira na tabela abaixo.
Aos poucos, a cidade de São Paulo vem ampliando a cobertura desde o período mais crítico da pandemia até o momento. Mas a velocidade ainda é vagarosa, como fica evidente no gráfico abaixo.
Em âmbito nacional, o número de crianças que não receberam nenhuma dose da vacina pentavalente (contra difteria, tétano e coqueluche) caiu de 710 mil para 430 mil, entre 2021 e 2022, conquistando mais 5 pontos na cobertura e chegando a 84%. Para a vacina contra a pólio, o número avançou 6 pontos no período, para 77%. Já a cobertura vacinal contra o sarampo atingiu 81% – melhor que a cifra de 73% em 2021, mas aquém dos 91% de 2019.
De acordo com especialistas, vários fatores explicam a baixa cobertura vacinal. Um deles é a sobrecarga nos serviços de saúde durante a pandemia, em que as equipes priorizaram o combate à covid-19. A ideia de que as unidades seriam ambiente propício para infecção do vírus desconhecido também contribuiu para afastar o público.
Outro elemento que impactou negativamente foi a campanha de desinformação que desacreditou a eficácia da vacina contra a covid-19, liderada pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL), e que prejudicou a confiança nos demais imunizantes.
“Mesmo depois de um ano de controle da covid, a cobertura vacinal não melhorou muito – e esse é um detalhe importante. Não tem mais a ver com a dificuldade para que familiares consigam buscar as unidades, mas com esse movimento de negacionistas que começaram a botar medo, de que ia ter problema de reação etc.”, observa o médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis e integrante da Rede Nossa São Paulo.
Dose a menos
Glabia nota um enfraquecimento das campanhas de imunização desde o governo de Michel Temer (MDB), governo responsável pela aprovação do teto de gastos, que limitou os investimentos inclusive nas medidas de conscientização. A educadora sugere que o poder público adote medidas como a vacinação em espaços abertos, reduzindo o risco para crianças com maior vulnerabilidade, como é o caso de seu filho.
Como trabalhadora da educação, ela percebe ainda uma falta de sintonia entre diferentes órgãos para monitorar crianças e adolescentes com a caderneta atrasada ou para facilitar o acesso das famílias em dias e horários alternativos aos das UBS, que geralmente funcionam de segunda a sexta-feira, entre 7h e 19h.
As aulas de Ciências de Djalma Sobral, 56, se tornaram estratégicas para desmentir mensagens enganosas. O professor leciona em escolas municipais e estaduais do Jardim Ângela e Capão Redondo (zona Sul de São Paulo) e observa que muitas famílias alegam falta de tempo para levar as crianças para tomar a vacina. Ainda assim, um grupo menor aponta a desconfiança com os imunizantes.
O boca a boca ainda faz a diferença para quem circula pelos territórios.
“Acho que deveria ter mais informação para a população aderir à vacinação. Temos as fake news que acabam atrapalhando atingir o público-alvo, principalmente da periferia, que se sente excluído da verdade”, reflete Genésio da Silva, 54, que é conselheiro gestor da AMA UBS Jardim Capela, da Supervisão Técnica em Saúde M’Boi Mirim e de outros equipamentos de saúde da zona Sul de São Paulo.
Mais do que fiscalizar os serviços, Genésio é a ponta de contato entre a comunidade e as unidades. Além de confirmar ou desmentir mensagens que a população recebe, também encaminha demandas como a vacinação a domicílio, especialmente para pessoas idosas e com deficiência. “Após nosso questionamento com a UBS, tivemos mais êxito para chegar até a população local”, garante.
Cobertura desigual
Apesar de já ter sido considerado modelo ao redor do mundo por conta do Programa Nacional de Imunização (PNI), a realidade nas diferentes partes do Brasil é muito contrastante. Com a pandemia e o jogo contra do governo Bolsonaro, ficou evidente uma situação de desigualdade vacinal.
O relatório “Desigualdade no acesso a vacinas contra a covid-19 no Brasil”, publicado em novembro do ano passado pela organização Oxfam Brasil, aponta que 35 milhões de pessoas não têm acesso a um posto de saúde no País.
Com mais de 687 mil mortes causadas pela covid-19 até outubro de 2022, o País foi superado apenas pelos Estados Unidos no número total de óbitos nas Américas. No continente, o coeficiente de mortalidade (323,31 óbitos por cada 100 mil habitantes) só foi menor que o do Peru. Ainda assim, no período analisado, o País figurava apenas em 15º lugar no ranking de países americanos em cobertura vacinal primária: apenas 78% da população com mais de 3 anos já havia completado o ciclo de imunização.
A falta de acesso a um posto de saúde, unidades sem equipamentos ou profissionais são reflexos da desigualdade sanitária – uma conjunção de fatores socioeconômicos, territoriais, de gênero e étnico-raciais. Com o segundo maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Estado de São Paulo foi o único a superar a meta, com 91% da população prioritária imunizada contra covid-19 no período analisado.
Na cidade mais rica do País, a Prefeitura propagandeia São Paulo como a “capital mundial da vacina”. Mais de 12,3 milhões de pessoas tomaram a primeira dose contra a covid-19, enquanto 11,7 milhões tomaram a segunda dose. Isso leva a uma índice de mais de 100% da população elegível imunizada, o que indica que residentes de outros municípios se locomoveram até a capital para se vacinar.
Porém, a taxa cai significativamente quando considerada a dose de reforço bivalente aplicada a partir de fevereiro deste ano, como mostram os números abaixo:
Para ampliar a cobertura, de 17 de julho a 31 de agosto SMS criou postos de vacinação contra covid-19 e também contra o vírus influenza da gripe em terminais de ônibus, estações de trem e metrô. Mais de 112 mil doses foram aplicadas com essa estratégia.
Em relação às vacinas infantis previstas no calendário, a assessoria de imprensa da SMS diz que tem investido em divulgação constante sobre a segurança e eficácia dos imunizantes. Também atua na busca ativa por agentes comunitários de saúde (ACS), que trabalham nas 470 UBS do município.
E nas escolas municipais, as famílias receberam no início do ano a Declaração de Vacinação Atualizada (DVA). Responsáveis pelas crianças devem levar o cartão à UBS de referência para atualização e preenchimento da caderneta, que deve ser devolvida à unidade escolar. Após análise conjunta pela SMS e SME, outras estratégias combinadas são realizadas, como a busca de estudantes que não entregaram a DVA e a vacinação nas escolas com baixa devolução do documento.
Em nível federal, o Ministério da Saúde escalou a apresentadora Xuxa para aparecer nas campanhas pela multivacinação junto ao mascote Zé Gotinha
É preciso avançar
O médico Jorge Kayano indica que a estratégia adotada pela Prefeitura paulistana é similar ao orientado pelo Ministério da Saúde, que incentiva a busca ativa de famílias com crianças que estejam com a vacinação atrasada. Ao cruzar as informações no banco de dados, as equipes das UBS conseguem identificar e entrar em contato com responsáveis. E, se for o caso, agentes comunitárias de saúde visitam essas casas.
Kayano ressalta que a medida é importante, pois as pessoas de fato podem se esquecer da vacina. Porém, é necessário ir além. O sanitarista reforça que é preciso criar alternativas para que as pessoas consigam se imunizar, com espaços de vacinação em parques, shoppings e locais de trabalho, inclusive à noite e aos fins de semana.
“Com esse problema do desemprego, muita gente tem o maior medo de faltar ou acabar tendo problema no trabalho por levar criança para tomar vacina”, salienta Kayano.
Ao mesmo tempo, é importante combater a desinformação na internet, inclusive com punição e bloqueio a quem propaga fake news sobre vacinas. “[A desinformação] pode custar muito caro para as crianças. Se tiver algum surto de doenças que poderiam estar sendo prevenidas por vacinas, a coisa pode pegar muito sério”, diz ele.
E por fim, Kayano defende uma campanha de educação permanente que envolva toda a sociedade para reforçar a importância das vacinas. “Essa é a primeira geração de pais que não conhecem as doenças, porque estão vacinados contra elas. E aí, [como estão protegidos] fica a impressão de que a vacina não tem tanta importância”, diz ele.
Enquanto isso, a covid-19 ronda o mundo: a variante éris, identificada primeiramente na Europa, já circula pelo Brasil. Apesar de ser considerada bem menos letal que as demais, a nova cepa pode ser mais contagiosa.
E você, está com a vacinação em dia?
Essa reportagem faz parte da ação da Oxfam Brasil sobre desigualdade no acesso a vacinas. Mais informações em http://www.oxfam.org.br/vacina-e-desigualdades.
Thiago Borges, Aline Rodrigues, Rafael Cristiano