Diversos fóruns, movimentos e coletivos que reúnem agentes culturais das periferias de São Paulo se articulam há mais de 1 mês contra a possibilidade de passar para organizações sociais a gestão das 20 Casas de Cultura da cidade, hoje administradas diretamente pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da Prefeitura. Entre os grupos articulados, estão os Fóruns de Cultura da Zona Sul e Sudeste, o Fórum Em Defesa da Vida, o CTP – Coletivo de Trabalhos Terceirizados, entre outros.
A Periferia em Movimento teve acesso a uma carta-manifesto assinada pelas coletividades, em que apontam a medida como um “ataque a territórios periféricos”. A carta deve ser protocolada na SMC e traz reivindicações como a suspensão imediata da transferência das Casas de Cultura para organizações sociais e a convocação de pessoas aprovadas em concurso público de 2016 para atuarem nos equipamentos, entre outras.
Em nota enviada à reportagem pela assessoria de imprensa, a Prefeitura informa que “a pasta está estudando a possibilidade de concessão das Casas de Cultura e, por enquanto, não há nada conclusivo a ser divulgado. A SMC ressalta ainda que não tomará nenhuma decisão sem consultar a sociedade civil”.
Criadas no início dos anos 1990 no governo de Luiza Erundina, as Casas de Cultura têm objetivo de descentralizar as ações culturais, com frentes como o entretenimento, com apresentações teatrais e musicais, por exemplo; e a formação cultural, com oficinas, cursos e vivências. Mais do que isso, têm um papel de articular e fomentar as manifestações culturais locais.
“As Casas de Cultura têm vocação em discutir a programação com a comunidade, em ter uma relação mais direta com artistas que estão atuando nos territórios”, explica o ativista e produtor cultural Gil Marçal, que foi coordenador dos programas de diversidade cultural da SMC até 2014.
“Quando a gente mostra uma estrutura de equipamentos geridos por organizações sociais, querendo ou não eles se mostram um pouco distante da ação cultural que os próprios territórios estão fazendo. E isso mostra o quanto o processo de uma terceirização sem identidade pode comprometer essa vocação, esse modo de ser das Casas de Cultura”, complementa Gil.
Um exemplo disso e que foi citado por algumas das pessoas consultadas para esta reportagem são as Fábricas de Cultura, equipamentos do Governo do Estado de São Paulo que são administrados por organizações sociais e consistem em grandes prédios em territórios periféricos, com atividades de formação e difusão artística, mas muitas vezes sem interlocução com agentes locais.
A organização Catavento administra 6 unidades (Sapopemba, Vila Curuçá, Itaim Paulista, Cidade Tiradentes, Parque Belém e São Bernardo do Campo), enquanto a Poiesis gere outras 6 (Capão Redondo, São Luís, Diadema, Brasilândia, Vila Nova Cachoeirinha Jaçanã). Em 2016, a Poiesis enfrentou a ocupação da unidade do Capão Redondo por um grupo de aprendizes contra a reformulação das atividades, além de denúncias e greve de educadoras e educadores. Relembre aqui.
A terceirização
A notícia de uma possível concessão das Casas de Cultura chegou aos movimentos no dia 16 de fevereiro de 2022, quando a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem sobre o interesse da Prefeitura. A justificativa apresentada pela SMC ao jornal foi de que 30% de profissionais dos equipamentos devem se aposentar em breve e que a concessão permitiria manter os serviços sem prejuízo à população.
Atualmente, a programação das Casas é tocada basicamente por uma pessoa da coordenação (em geral, concursada ou indicada política) e integrantes do Programa Jovem Monitor Cultural, que é uma política pública de formação em gestão cultural.
Segundo o jornal, a secretária da pasta Aline Torres pretende lançar um edital de concessão dos espaços até julho deste ano. A reportagem diz ainda que entidades sem fins lucrativos (como fundações e associações), cooperativas e até organizações religiosas poderiam concorrer à licitação e firmar parcerias com o poder público por meio de termos de fomento, colaboração ou cooperação – nos 2 primeiros casos, há a transferência de recursos públicos para que as organizações façam as contratações.
Essa terceirização da gestão dos espaços já acontece em outras pastas, como a Saúde, Assistência Social e Educação: unidades básicas de saúde, (UBS), prontos socorros, hospitais, centros de educação infantil e diversos serviços assistenciais, como centros de convivência de crianças, adolescentes e idosos ou de acolhimento para mulheres vítimas de violência, já são administrados por organizações sociais – algumas delas originárias de articulações e movimentos locais, enquanto outras têm ligações com grupos político-partidários consolidados na cidade.
Segundo uma ex-funcionária que têm conhecimento dos bastidores da secretaria e preferiu não se identificar, a própria equipe da pasta tomou conhecimento da terceirização por meio da imprensa.
Ainda de acordo com a ex-funcionária ouvida por esta reportagem, após a publicação no jornal a secretária Aline Torres teria convocado uma reunião com a equipe da pasta para dizer que um estudo sobre a situação das Casas de Cultura estaria em curso. Esse estudo teria sido enviado a outras secretarias municipais, inclusive para a Secretaria de Desestatização e Parcerias, responsável por privatizar serviços públicos no município.
A ex-funcionária também aponta que a justificativa da falta de pessoal para tocar a programação das casas é real por conta da falta de concursos públicos. Porém, por outro lado, a solução para isso não seria difícil uma vez que em 2016 a própria Prefeitura selecionou 600 pessoas em um concurso para agentes de gestão pública (AGPPs), que podem receber capacitação para atuar em diferentes áreas da administração municipal.
“O que a gente defende é que sejam chamados pelos menos 4 concursados para cada Casa de Cultura, e que sejam treinados para isso”, explica a ex-servidora.
Falta participação
Para o agente cultural Aurélio Prates, há um desinteresse do poder público em garantir a participação social na gestão – que, inclusive, passa de gestão para gestão. “Os trabalhadores da cultura sinalizam as metas que o governo deveria executar a médio e longo prazo”, diz ele, que é integrante do Fórum de Cultura de Cidade Ademar (na zona Sul).
Aurélio lembra que foram realizadas 3 conferências municipais de cultura em 2004, 2007 e 2013, em que foram estabelecidas essas metas. Em 2016, último ano da gestão de Fernando Haddad (PT), o então prefeito publicou um decreto regulamentando o Plano Municipal de Cultura, que inclui entre as metas a reestruturação geral da SMC. Porém, como o texto não virou lei, a proposta segue engavetada pelo poder executivo municipal.
“Já há muitos anos que temos acompanhado essas aposentadorias. Por isso, a gente bate na tecla da reestruturação, para trazer pessoas pra dentro da Secretaria, [algo que] se faz necessário pra saúde da Secretaria, dos seus programas e para que os recursos cheguem nos territórios periféricos”, continua Aurélio.
Os conselhos gestores das Casas de Cultura, regulamentados por lei há 3 décadas, são espaços de controle social e participação, mas segundo os movimentos desde 2016 esses espaços não têm funcionado da melhor forma.
“A gente não quer enfrentar. A gente quer colaborar com a pessoa pra melhorar a administração pública”, completa.
Na Câmara Municipal, os mandatos dos vereadores Celso Giannazzi (PSOL) e Eduardo Suplicy (PT) solicitaram informações à SMC sobre os estudos realizados. E a mandata coletiva Quilombo Periférico (PSOL), que preside a Comissão de Finanças, solicitou um audiência pública sobre o assunto.
Atualizado às 16h19 de 28 de março de 2022 para incluir resposta da Prefeitura de São Paulo.
Thiago Borges