Antes marginalizado, boné de crochê gera renda e marca estética da quebrada

Antes marginalizado, boné de crochê gera renda e marca estética da quebrada

Arte venceu as trancas do sistema, se popularizou nas periferias e, mais recentemente, chegou à programação do Sesc e às passarelas da SPFW

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Tempo de leitura: 11 minutos

Reportagem de André Santos. Edição de texto: Thiago Borges. Fotos: Divulgação

Com nomes de bairros, logotipos de marcas famosas como Nike ou Lacoste e símbolos como yin yang, há décadas os bonés feitos de crochê fazem parte da paisagem das periferias de São Paulo. A aplicação da técnica milenar nos acessórios que cobrem as cabeças é muito comum entre pessoas encarceradas, que aprendem o ofício nos presídios e veem uma forma de ganhar uma grana. A arte venceu as trancas do sistema, se popularizou nas quebradas e, mais recentemente, chegou à programação do Sesc e às passarelas da São Paulo Fashion Week.

“[O boné de crochê] era visto como apologia [ao crime], como uma coisa zoada. As pessoas usavam do fato de ter vindo da cadeia para tentar desmerecer, sendo que até mesmo lá dentro o crochê em si tá salvando vidas, resgatando vários parceiros”, comenta o artesão Vitor Siqueira, de 22 anos, dono da marca Crochê de Vilão e um dos responsáveis pelo Coletivo Artesanato Chave.

Morador de Mogi das Cruzes (SP), antes de crochetar Vitor trabalhou como vendedor em faróis, nos trens da CPTM e também em uma distribuidora de artigos para festas. Em 2018, na volta de um dia de serviço, a trajetória dele mudou quando encontrou um amigo recém saído do cárcere.

“Eu encontrei um conhecido meu que tinha acabado de cantar de liberdade, e ele estava fazendo um crochê na frente da casa dele. E eu sempre usei crochê. A cultura é muito forte aqui em Mogi”, relembra Vitor, que encomendou um boné com esse amigo por R$ 30.

Curioso com a produção dos artigos, Vitor pediu para aprender. Por ser canhoto, ele teve dificuldades e ficou 2 meses treinando até conseguir finalizar sua primeira peça. “Eu fui muito humilhado, mano. Os caras do trabalho ficavam me tirando quando eu fazia os crochês, ficavam falando que era bagulho de mulher. Mas eu sempre tive o objetivo na minha mente de que eu podia ir além com essa arte. Aí eu pedi para sair desse trampo para me dedicar só à arte”, conta ele. Hoje, um boné é vendido por até R$ 350.

Entusiasmado, Vitor abriu o grupo Artesanato Chave no facebook. Na rede social, conheceu e se conectou com outras pessoas que também se dedicavam ao ofício. Assim, nasceu o Coletivo Artesanato Chave, que hoje reúne 5 integrantes (na foto ao lado, com Vitor, Diego, Estevão, Rafael Kurgan e Matheus) e é parte importante desse progresso evidente.

“A arte salva vidas”

Outro  integrante do Artesanato Chave é Diego Henrique Domingos, 34, que conheceu Vitor nos comentários feitos em publicações no facebook, em que ambos buscavam motivar demais artistas para que não desistissem do trabalho por conta de comentários maldosos. O próprio Diego ficou 6 anos sem produzir bonés de crochê, até se inspirar nessas postagens e retomar o ofício em 2020.

Diego começou a fazer crochê há 14 anos, quando estava inserido no sistema prisional. Lá, em 2008, comprou um boné de um companheiro e pediu para aprender a produzir também. Sem o material necessário, ele improvisou.

“Eu tinha um radinho e umas pilhas. Dentro da pilha, tem uns pregos. Aí eu peguei essas pilhas e transformei numa agulha, desfiz uma blusa de tricô que eu tinha, fiz uns rolinhos de linha, aí eu fui treinando para fazer meu primeiro boné”, recorda-se ele, que fez mais de 100 bonés com a agulha improvisada.

Depois de conquistar a liberdade, ele interrompeu a produção e há 2 anos voltou a comercializar suas peças a valores mais modestos. Hoje, soma mais de 340 bonés confeccionados, o que se tornou sua principal fonte de renda.

“Consegui juntar um dinheiro e dar entrada numa casinha, e hoje em dia eu já tô indo para o sexto mês morando nela. Então, isso quer dizer que a arte salva vidas mesmo, e graças a Deus eu tô conseguindo ajudar outras pessoas também”, diz ele, que é dono da marca Arte do Magro e mora no Jaraguá (zona Noroeste de São Paulo).

Quem também aprendeu as técnicas na detenção foi Rafael Estevão, 30, de São José dos Campos (interior de São Paulo). Dono da marca Crochê do Estevão e de um canal no youtube em que ensina técnicas manuais gratuitamente, ele também produz bolsas, tapetes e porta-isqueiro.

“Dentro de um presídio, você fica meio depressivo. E eu consegui sair dessa depressão com crochê”, conta ele, que esteve no cárcere em 2017 e viu no conhecimento adquirido uma forma de fugir do desemprego quando obteve a liberdade.

Sem barreiras

Desde 2015, o projeto Ponto Firme ministra aulas de crochê como transformação social para pessoas que estão ou passaram pelo cárcere. Para Danilo Sorrino, 38, fotógrafo e produtor da iniciativa, um dos objetivos é justamente apontar novos caminhos e auxiliar aprendizes a enfrentar um período conturbado.

“A gente observou que alguns deles já faziam crochê, outros tinham interesse em aprender, então a resistência não foi tão grande. O que a gente fez foi levar mais referências para ampliar o repertório dessas pessoas para que pudessem enxergar no crochê uma forma de terapia de ocupação, e principalmente fazer com que eles tivessem uma geração de renda. Outra coisa é que, a cada 12 horas de aula, reduz um dia na pena das pessoas que participam de nosso curso”, conta Danilo.

O Ponto Firme foi o responsável por levar os bonés até as passarelas do SPFW. A primeira participação aconteceu em 2018, quando apresentaram à organização do desfile uma coleção de peças de roupas desenvolvidas pelos alunos. “Isso precisava ser mostrado em um ambiente onde convencionalmente eles não ocupariam, que é um desfile de moda. Isso é arte, né? Precisamos romper essas barreiras”, diz Danilo.

Um fator interessante em relação aos bonés é a ligação com a música periférica, sobretudo com o funk e rap, sendo muito utilizado por MCs e personalidades dos gêneros. Isso se deve à relação próxima entre essas expressões artísticas, uma vez que geralmente abordam os mesmos temas, vivências e percepções, além de protestarem contra a violência que o sistema imprime em territórios periféricos.

Integrante do Artesanato Chave e criador da marca Crochê 777, o MC Rafael Kurgan, 23, exalta a técnica na música “Ponto por Ponto”. “Eu tive a ilustre ideia de fazer músicas para o artesanato, para os bonés de crochê, em homenagem à minha própria arte e à arte que eu admiro dos meus colegas. Minha meta também é estourar no funk relatando a vida de um artesão”, diz o morador da Vila Prudente (zona Leste).

Futuro

Além da participação na SPFW, o coletivo foi convidado para a Mega Artesanal, uma das maiores feiras do setor no País, e para a Campus Party, que é voltada à tecnologia. A presença em eventos dessa magnitude é fruto de uma importante parceria com o Somos Moira, empresa do ramo gerida por Marie Castro e que apadrinhou o Artesanato Chave. As participações auxiliam a mostrar para o público quem são os artesãos por trás dos trabalho, valorizando os produtos e também as pessoas que os fazem.

“A gente tá criando um movimento de defesa. Quando vemos nossas peças sendo copiadas na Europa ou em outros lugares, a gente vê que vai só o trabalho, não vai o artesão, não vai o corpo, só o trampo, sabe? Então a gente quer fortalecer nesse sentido de dar visibilidade para quem criou a estética, para quem pensou e sofreu pressão por defendê-la”, conta Matheus Rodrigues, 27.

Também integrante do coletivo, o morador de Jundiaí (SP) começou no crochê em 2020, por conta do desemprego em meio à pandemia. Logo se estabeleceu como uma das referências na produção de chapéus e se aproximou de Diego, o Magro, e Vitor, o Vilão.

Atualmente, o grupo tem várias iniciativas em curso, como o Encontro Artesanato Chave no Sesc, com oficinas mensais para formar novas pessoas na arte e compartilhar materiais. Também já foram convidados para palestras no Sesc e no Senai.

“Espero que o nosso coletivo seja reconhecido, que o nosso trabalho seja valorizado e que a gente consiga alcançar um público que ninguém espera. Que a gente possa trazer pessoas em situação de rua para podermos ensinar a fazer, para eles poderem ter uma renda e sair dessa vida, sabe? A gente busca ensinar crianças também”, conta Estevão.

Apesar da relação, é um erro atrelar a origem dos bonés ao sistema prisional. O crochê é uma atividade ancestral e o uso de peças desenvolvidas a partir desta técnica está presente em diversas culturas espalhadas pelo mundo, como a rastafari e muçulmana.

“Adereços de cabeça feitos de crochê são uma coisa que está presente em culturas que foram criminalizadas e sofreram tentativa de extermínio há muito tempo. De uma certa maneira existe um reducionismo da galera quando olha pro boné de crochê e coloca assim: ‘ah, surgiu na cadeia’”, explica Matheus.

Para o futuro, o coletivo planeja produzir um documentário, lançar livros de tutorial e abrir uma sede que serviria como ateliê e espaço de formação. Existe, inclusive, um projeto para que essas palestras migrem para dentro de unidades da Fundação Casa. “Esperamos trazer para a periferia uma mudança de vida através do crochê, através dos bonés”, completa Estevão.

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