Transcestralidade: Quais memórias temos de pessoas trans e como isso influencia na perspectiva de futuro?

Transcestralidade: Quais memórias temos de pessoas trans e como isso influencia na perspectiva de futuro?

No Dia da Visibilidade Trans, leia artigo de Vênuz Capel, transvestigênere não binárie e criade na maior rede de palafitas da América Latina

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Por Vênuz Capel

Inicio esse texto pedindo licença aos que chegaram antes de mim e aos que ainda estão por vir, e trago junto um questionamento: poderia o corpo vincular-se a uma ancestralidade diferente da genealógica?

Hoje, 29 de janeiro, é o dia em que no Brasil se comemora Dia Nacional da Visibilidade Trans – data celebrada desde 2004, quando um grupo de ativistas transgênero foi ao Congresso Nacional para se manifestar em favor da campanha Travesti e Respeito, num ato político de afirmação da diversidade de identidade de gênero no País.

Essa data particularmente me traz diversos questionamentos, mas acredito que o maior deles é: quais memórias nós temos quando falamos de transgeneridade? Quais memórias sobre vidas transvestigêneres no passado nós temos? E o que essas memórias ou a falta delas nos influencia quando pensamos no futuro? Quais poderiam ser as ancestralidades do corpo trans e referências sobre o passado de corpos trans?

Quando penso sobre isso, me lembro muito dos ensinamento do meu avô de santo – a bença, Prof. Bàbá Alexandre Teles d` Ṣàngó -, que diz que vivemos coisas que nunca vivemos antes, mas não nos causa estranhamento, causa um sentimento de lembrança de algo que possamos ter vivido. E esse sentimento é o de relembrar nossa ancestralidade, porque ela sempre esteve ali. Nossa memória que nunca foi estimulada a lembrar dela.

Não tem como iniciar esse assunto sem traçar um paralelo com as religiões de matriz africana e indigena e suas referências. Afinal,  quais semelhanças guardam entre a corporalidade de matrizes não-hegemônicas com as corporalidades transgêneras?

E esse é a importância de pensar sobre memória transvestigênere, sobre o porquê não pensamos e não temos como referências corporalidades trans que vieram e existiram antes de nós, e quando digo isso também me refiro sobre quais referências a cisgeneridade tem sobre a transgeneridade, porque as corporalidades trans no Brasil estão bem longe dessas referências eurocêntricas e estadunidenses de transgeneridade.

Por que jovens transmasculines no início de transição não conseguem ter acesso a referências como Jandir, um transmasculino negro que ganhou visibilidade em Belo Horizonte em outubro de 1949, que mesmo com a opressão generalizada da epoca não abria mão de se sentir e se portar como se identificava? Jandir chegou a ser preso e alvo de diversas matérias no jornal local por estar vestido com roupas ditas masculinas em locais públicos. Até abril de 1950, Jandir viveu em BH, saindo de cena a partir de então sem se saber o que lhe aconteceu.

E quando falamos de memória, falamos sobre ter vivas em nossas referências essas corporalidades que viveram em tempos tão antigos, como as corporalidades trans que viveram na famosa rua da Guia, localizada em Recife. Em registros, essa era uma rua muito famosa na década de 1920 por ser uma rua boêmia e com grande concentração de trabalhadoras do sexo, e logo com muitos registros de pessoas trans.

“Tinha a rua da Guia, que era a região das prostitutas mais barra-pesada, mulheres valentes, todas cortadas de navalha (…) tinha a Lolita, transexual, que morava na rua da Guia… Brigava com três policiais, lutava capoeira, e escapava de ser levada presa” (Cf. Motta, 2002).

Ainda na rua da Guia posso citar Maria Navalha, como um símbolo da transcestralidade, entidade de religiões de matriz africana-indigena. Em Recife ela é muito conhecida como uma entidade que teve sua vida no Mercado São José, Cais do Porto, e na rua da Guia. Maria Navalha era um dos alvos na época colonial, onde a vulnerabilidade de seu corpo contribuia com a fetichização naquele tempo pela prostituição.

Contudo, busco novos caminhos de compreensão da ancestralidade, que não corroboram com os mecanismos da cisnormatividade e que entendi também que isso perpassa pela colonização que levou o apagamento de diversas identidades de gênero não ocidentais. Que possamos reinventar o que temos de memória transvestigênere, para assim construir um futuro diferente quando falamos de corporalidades trans e uma noção de transcestralidade que aponta as limitações da visão cis ocidental branca de ancestralidade.

Vênuz Capel é transvestigênere não binárie e criade na maior rede de palafitas da América Latina. É comunicadore social, produtore cultural e audiovisual. Na Periferia em Movimento, é responsável pela gestão de mídias sociais

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