Matrizes africanas e o sagrado negro: Como a fotografia pode reforçar ou combater o racismo religioso

Matrizes africanas e o sagrado negro: Como a fotografia pode reforçar ou combater o racismo religioso

Neste 21 de março, Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, o Ogan e fotógrafo Roger Cipó* escreve sobre os olhares lançados para as práticas religiosas nos terreiros

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Tempo de leitura: 10 minutos

Preciso começar dizendo que esse texto foi refeito.

Enquanto eu fechava a versão original desta publicação, me deparei com a notícia de que um fotógrafo brasileiro estava indicado para um grande prêmio da fotografia mundial, por um ensaio dedicado às tradições religiosas de matriz africana.

Fui pesquisar o trabalho e, em uma publicação, me deparei com uma defesa do profissional e compartilho aqui apenas com o intuito de localizar a discussão que proponho, nestas linhas.

Um trecho me chamou muito a atenção e copio aqui: “Infelizmente, tenho sido alvo de diversos ataques de pessoas extremistas que, além de não entenderem meu trabalho, me desrespeitaram por ser um homem branco que fotografa o universo religioso afro-brasileiro. Devido à minha cor, fui rotulado como um explorador dessa cultura e que desrespeita seus valores éticos. Infelizmente, a lacração e a polarização das redes sociais cegam as pessoas para que elas não entendam o que criticam”. 

Leia com atenção. 

Aqui, não discutiremos o valor do trabalho, críticas e defesas, mas o que tudo isso quer, ou não dizer, numa sociedade que tem bases sólidas no racismo, na exploração social, de gênero e classe.

Quero provocar sobre o papel da fotografia na produção e manutenção de violências raciais; e também quero lançar luzes sobre como pessoas negras reelaboram linguagens de liberdade ao se apropriarem de forma devida e reparadora de instrumentos do audiovisual, da mídia e da própria fotografia para contar nossas histórias e reivindicar a humanidade que as lentes do racismo sequestraram ou subalternizaram, em nome de imagens místicas, fetichizadas e apelativas.

Afinal, se falamos de uma sociedade estruturalmente racista, por que a fotografia e seus fazedores estariam isentos desse debate?

Uma tradução livre e até preguiçosa (da minha parte) define a palavra fotografia como “escrever com luz”. E é isso que fazemos ao fotografar.

Nos meus 16 anos de carreira fotográfica, uma das principais lições foi entender que a nossa imagem é, antes de clicada, produzida no imaginário e esse é resultado de experiências acumuladas que também baseiam sonhos, anseios,  projeções, fascínios, medos e tantos outros sentimentos.

E ao fotografar, você também pode revelar como enxerga o mundo, chamar atenção de olhos que não enxergam como os seus ou apresentar novas perspectivas das coisas, pessoas e espaços.

Comecei a fotografar fascinado pelos movimentos da capoeira, tradição que me batizou como “Cipó”. Registrar os movimentos e expressões era a minha forma de apresentar as belezas da capoeira ao mundo.

Depois, participei de um programa de formação para jovens lideranças e, em um grupo de comunicação, decidimos criar um projeto que contaria as histórias e memórias de uma comunidade remanescente do Lixão do Sítio Joaninha, que ficou ativo até o começo dos anos 2000, na divisa de Diadema com São Bernardo do Campo.

Imagine que, por se tratar de uma comunidade construída em contexto de extrema vulnerabilidade social, muitas das vezes as imagens eram carregadas de tragédias, dores e a precarização da vida dos personagens, mas a gente também tinha em mente que era muito importante mostrar a vida para além da mazelas que aquela condição social produzia.

Romantizar a pobreza? Não, mas o que a gente queria era utilizar nossas ferramentas para apresentar humanidade e dignidade de um povo que é vítima das desigualdades, sem deixar de denunciar as violências que atravessavam cada pessoa que ali lutava para melhorar o bairro.

Pouco tempo depois, dois fatos importantes da minha vida coincidiram: o meu contato com o candomblé e o ingresso no curso de fotografia profissional. E, literalmente, a minha forma de ver o mundo e a fotografia se transformaram.

Eu me fascinei pelo candomblé.

Cores, formas, movimentos, danças e relações comunitárias me saltavam os olhos e eu me perguntava: “Por que eu nunca tive interesse nesses espaços antes?”. E mais: “Por que o terreiro de candomblé é tão demonizado a ponto de tudo que eu vi, li e assisti sobre candomblé ser carregado de estigmas, preconceitos e demonização?”

As minhas respostas emergiram no aprofundamento de estudos das questões raciais e na relação com militantes do movimento negro organizado, que me deram as primeiras lições sobre o papel da mídia na manutenção de violências raciais, estereótipos negativos da população negra na mídia.

Mas foram os militantes que me disseram que a fotografia que eu estava produzindo nos terreiros de candomblé tinham um papel político importante porque elas apresentavam o povo de santo a partir de nossas próprias experiências, sem desumanizar, demonizar ou tratar como objetos de estudos fontes de imagens icônicas, descompromissadas com os interesses de preservação e valorização desses espaços.

Foi aí que entendi minha missão e, desde então, Olhar de um Cipó, meu projeto que virou um blog e depois plataforma de comunicação com foco nas tradições sagradas negras, se propõe a ser instrumento de valorização e preservação do sagrado negro.

Em palestras, cursos e em toda ocasião que preciso falar desse trabalho, começo dizendo que sou Ogan e, só depois, fotógrafo. Ser Ogan é meu local e marcador para produzir fotografia respeitando todos os ritos, preceitos e conceitos das religiões dos orixás.

Ser um homem negro, educado por movimento social e iniciado nas tradições dos orixás me permitiu criar um linguagem de fotografia que não se interessa na mística dos rituais, e que não tem interesse em desvendar os mistérios por trás dos terreiros. Isso é aquilo que chamo de vícios de lentes produzidas pelo racismo.

A subalternização de pessoas, culturas e tradições negras que a escravização e estrutura racista produziram encontraram na fotografia uma grande ferramenta de disseminação e manutenção desses discursos. Basta pensar sobre como pintores, fotógrafos e cineastas contaram (e continuam) contando nossas histórias e retratando nossos corpos. 

No que diz respeito à fotografia, eu sempre lembro que li alguns dos livros de um antropólogo que viveu por muitos anos, na Bahia, e em um deles, um ensaio grande com homens trabalhadores do cais do porto apresenta corpos e rostos sem nome. Aqueles homens não tinham nomes? Tinham, mas interessava a quem apresentar (ou não) as identidades de pessoas negras, a partir delas próprias?

Print da revista Paris Match

Ou o caso da revista francesa que desembarcou na Bahia e produziu um ensaio fotográfico durante uma cerimônia de iniciação no candomblé e publicou sob o título de “As possuídas da Bahia” (Paris Match, 1951). Isso por si só já é terrível, mas como se trata de racismo, tudo pode piorar.

Na mesma época, a revista brasileira “O Cruzeiro” convocou José Medeiros, um dos maiores fotógrafos brasileiros dos anos 1950, para ir até a Bahia e fazer um ensaio que fosse “a resposta brasileira aos franceses”, porque, até aquele momento, nenhuma publicação brasileira tinha acessado um território de matriz africana para registrar tal cerimônia.

O ensaio de Medeiros foi publicado como “As noivas dos deuses sanguinários”, e a responsabilidade do título foi atribuída ao editor.

Entre a branquitude francesa e a brasileira, a brancura de lentes racistas promoveu demonização das religiões de matriz africana, porque não se tinha compromisso com a valorização desses saberes e legados. O importante era explorar e ainda hoje, caçadores de imagens exóticas alimentam seus egos e suas contas com a busca por imagens que pouco, ou nada valoriza aquilo que comunidades seculares lutam para preservar.

Por outro lado, é histórico também a luta de fotógrafos negros e fotógrafas negras que se colocam à disposição das lutas dos povos de terreiro e transformam suas imagens em instrumentos sensíveis de promoção, valorização e salvaguarda de histórias de axé.

São olhares que se dobram, olham de dentro, com respeito e cuidados aos limites. Que  sabem a hora de desligar suas câmeras e entender os limites de suas lentes. A consciência e pertencimento ensina isso também. A forma com que os olhares são educados, define essas imagens, também, e eu sei que vocês entenderam o que eu quero dizer com tudo isso, certo?

E eu não quero dizer que pessoas brancas não podem fotografar esses territórios. Longe de mim.

O que eu afirmo é que o racismo ainda povoa o imaginário e é o principal filtro nas lentes de grande parte desses profissionais. Logo, é preciso se perguntar o quanto suas produções servem de ferramentas de manutenção das violências raciais que te beneficiam.

Que tipo de discurso essas fotografias escrevem?

*Roger Cipó é Ogan. Fotógrafo dedicado a valorização das tradições afro-brasileiras, diretor e criador da série Todo Dia História Negra.

Premiado pela plataforma Olhar de um Cipó, também foi considerado um dos 50 nomes que transformaram a criatividade no Brasil, pela WiredX (2021) e uma das 100 personalidades negras mais influentes da Lusofonia, na Powerlist 100 Bantumen (2024).

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