Por Carlos Rio*
No dia 16 de abril de 2024, o Senado aprovou a PEC 45, que pretende inserir na Constituição a criminalização da posse ou porte de drogas. A PEC segue para a Câmara, onde será votada e, com todas as possibilidades plausíveis, será aprovada. A PEC é de autoria do senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado.
O texto aprovado pelos senadores diz que “a lei considerará crime a posse e o porte, independente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins…”
Já passou da hora da sociedade brasileira discutir com seriedade e coragem uma Política de Drogas que esteja em sintonia com a realidade. Para isso, é necessário que especialistas no assunto sejam envolvidos num debate objetivo, sem preconceitos, dogmas e totalmente desconectados da dinâmica social, inclusive em nível mundial.
A discussão sobre a descriminalização da maconha ganha proporções afeitas à falsa relação do uso como indutor ao crime nas periferias dos grandes centros urbanos.
O jovem periférico, independente se usuário ou não, já é por consenso das classes privilegiadas um jovem potencialmente perigoso, que precisa ser vigiado, abordado, suspeitado. Se usuário, segue o caminho naturalizado da delegacia, do encarceramento e do fortalecimento do estigma do jovem problemático. É importante destacar que a população negra já é a mais afetada pela repressão ao porte com índices de encarceramento desproporcionalmente maiores do que a média nacional.
O projeto de lei aprovado no Senado, como de resto todas as leis aprovadas nesse imenso país de brutal desigualdade, deverá portanto ser aplicado atendendo aos requisitos que mantêm a legalidade de acordo com os critérios que legitimam as diferenças de classe, raça e território. Dito de outra forma, pobres, pretos e periféricos sofrerão, mais uma vez, a seletividade da aplicação da lei.
Dichavando o problema
A maconha é a droga ilícita mais usada no Brasil e no mundo e não há registro de morte por overdose de THC, seu princípio ativo. A maconha é uma droga branda, recreativa e de longe dissociada de atos de violência doméstica ou acidentes de carro, como no caso do lícito álcool responsável direto por esses atos, em grande escala e nem por isso o Senado pensa em criminalizá-lo, e nem deve, sob pena de estimular, imediatamente, o tráfico e banditismo, como acontece com a cannabis.
Fosse legalizada, a figura do traficante ganharia uma forte concorrência e os níveis de exposição ao perigo para compra, porte e consumo cairiam a zero, além da arrecadação bilionária de impostos. Interessa? Não. Interessa manter mitos como “maconha porta de entrada para outras drogas”.
E aqui é necessário manter uma distinção entre usuário e dependente químico, sendo o primeiro um consumidor recreativo que não compromete sua vida, comportamento, trabalho, enquanto o dependente químico desenvolveu um transtorno de caráter compulsivo que requer tratamento com condições de reabilitação favoráveis.
Chegar à dependência química nada tem a ver com uma droga especificamente, mas como uma pessoa se apropria e se relaciona com ela, como a droga assume um papel fundamental na vida de uma pessoa e não de outra, não por causa da droga especificamente mas da complexa relação psíquica subjetiva com a realidade em torno.
Nesse sentido, a reabilitação é um tratamento multifacetado, interdisciplinar exercido por profissionais capacitados. Lamentavelmente, o que assistimos atualmente é a proliferação de comunidades terapêuticas dirigidas por “religiosos” e oportunistas que oferecem cura baseadas na abstinência, Bíblia e trabalhos forçados disfarçados de “laborterapia”.
Guerra aos pobres
Interessa também ao proibicionismo manter a chamada “guerra às drogas” no Brasil ao custo de R$ 15 bilhões anuais, segundo o IPEA. Gastos sem a menor fiscalização da sociedade civil, tendo como resultado um retumbante fracasso.
Mas, segundo o relator da PEC, senador Efraim Neto, “não há tráfico ilícito de entorpecentes sem usuários para adquiri-los, e por esse motivo, deve se combater, também, a conduta de quem possuir ou portar drogas, ainda que para consumo pessoal. É a compra do entorpecente que alimenta o tráfico dessa substância, o que acaba por financiar o crime organizado e a violência inerente a essa criminalidade”.
Ou seja, se a guerra às drogas é ineficiente e vergonhosa, que se puna o elo mais fraco e acuado, a massa da população negra e periférica que responde por 68% do encarceramento dos presos ligados a lei das drogas em vigor, segundo dados da USP.
É com esse nível de justificativa que se convence 53 senadores a aprovar uma lei absolutamente retrógrada, mesmo que diversos estudos demonstrem a ineficácia da guerra às drogas na redução do consumo e do tráfico; os altos custos sociais e econômicos que gera; encarceramento em massa, violência policial e violações de direitos humanos.
A política de guerra às drogas se origina de um viés moralista e conservador, que demoniza aquilo que não se compreende. Isso resulta em medidas proibicionistas que, quanto mais rígidas, mais exigem fiscalização e, consequentemente, mais recursos financeiros. Os governos e as elites brasileiras veem no proibicionismo uma oportunidade de reprimir as classes trabalhadoras, o território periférico. E somente o território periférico, registre-se.
A configuração atual das políticas de álcool e drogas no Brasil se origina do paradigma proibicionista que surgiu na virada do século nos EUA pelo ultraconservador Harry Anslinger que, em busca de notoriedade, misturou raça e uso de drogas tornando alvo de sua obsessão mexicanos e negros, como fica claro em sua declaração: “o baseado faz com que os escuros achem que são tão bons quanto os homens brancos”. Eis a gênese da guerra às drogas, consolidada na década de 1980, quando começou a se basear em uma lógica explicitamente belicista e prisional.
Durante a ditadura militar, houve um endurecimento significativo das políticas antidrogas, contribuindo para o aumento da violência policial em comunidades e favelas, sem indício algum da diminuição do tráfico e consumo.
O efeito mais visível da “guerra às drogas” no Brasil é o encarceramento em massa da população jovem, pobre e negra. Isso faz do Brasil o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA e da China
Sem hipocrisia
É preciso que se entenda que não haverá um mundo sem drogas. A experiência ou curiosidade de alterar a consciência por uso de drogas ao longo da história tem raízes em diversas culturas e contextos sociais. Muitas vezes, essas substâncias eram utilizadas em práticas cerimoniais, rituais religiosos, medicinais e recreativas. As pessoas buscavam diferentes efeitos, com alterações de consciência, relaxamento, alívio da dor, entre outros.
O uso dessas substâncias também está ligado à busca por prazer e fuga temporária de preocupações ou problemas do cotidiano, frustrações por destruição de sonhos impostas pelo modelo produtivo e exploração excessiva da mão de obra desprovida de oportunidades e convivência discriminatória ostensiva.
A relação do homem com as drogas é complexa e multifacetada, envolvendo aspectos culturais, sociais, psicológicos e até mesmo espirituais, como já dito, que acompanham o Homem desde sempre e para sempre.
Isso posto, a saída madura e eficaz para a questão é atender o usuário com acompanhamento de redução de danos, que são medidas que visam a eficácia do uso responsável através de informações e orientações ao usuário, no sentido de minimizar sintomas, sequelas e propagação de eventuais doenças transmissíveis.
É oportuno lembrar que nada disso invalida a prevenção ao uso de drogas, desde que além de cartazes tipo “diga não às drogas” colados nas paredes das escolas. A chave é a informação objetiva, portanto desprovida de preconceitos e hipocrisia.
Para se ter uma ideia do exposto, quando pesquisei o porquê da relutância de escolas em fazer um projeto de informação sobre drogas, descobri, segundo diretores e diretoras, que os pais tinham resistência ao tema o que deixa explícita a imaturidade e cinismo de parte significativa da sociedade que acaba por sua vez adotando os clichês proibicionistas, não enxergando que a criminalização do porte de maconha é um passo na direção errada, que ignora a derrota da guerra às drogas e os impactos negativos que deve ter sobre as populações mais marginalizadas.
Em vez de criminalizar o porte de maconha, o Estado deveria investir em políticas públicas de saúde pública como ampliação de unidades CAPS-AD e outras iniciativas que abordem o consumo de drogas de forma abrangente e eficaz, ao contrário do que acontece com a maioria das comunidades terapêuticas, geralmente mais próximas da concepção de campo de concentração.
É urgente que o Brasil repense sua abordagem às drogas, buscando alternativas mais eficazes, justas e humanizadas sob pena de manter a população periférica como bode expiatório de uma política absolutamente retrógrada.
Carlos Rio é sociólogo, professor da Rede Emancipa Grajaú e acompanhante terapêutico especializado em Dependência Química. Possui Instagram (@carlosriodependenciaquimica) onde posta esclarecimentos sobre o transtorno
Colaboração