Alzheimer na quebrada: Famílias periféricas falam sobre os desafios do cuidado e do envelhecimento

Alzheimer na quebrada: Famílias periféricas falam sobre os desafios do cuidado e do envelhecimento

No Brasil, 8 a cada 10 pessoas com 60 anos ou mais vivem com algum grau de demência - a maioria, com Alzheimer. Doença desafia serviços públicos e especialmente familiares, que precisam adaptar rotina em um cenário com menos direitos assegurados

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Tempo de leitura: 11 minutos

Por Hysa Conrado. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

Foi Marcia Dutra, 51 anos, a primeira a perceber que seu pai estava diferente e que precisava de atenção redobrada mesmo antes do diagnóstico de Alzheimer chegar.

Ela é a filha mais velha de Miguel Dutra, 83 anos, e vive uma rotina dividida entre o trabalho e os cuidados com a família, em Eldorado, periferia de Diadema (região metropolitana de São Paulo). Além do pai, a gerente de Recursos Humanos também tem uma irmã com deficiência e uma mãe idosa.

Marcia e o pai, Miguel Dutra (acervo pessoal)

Marcia e o pai, Miguel Dutra (acervo pessoal)

“Supermercado, farmácia, médico dos três, exames, tudo sou eu. Mas eu sempre tenho um sentimento de que não estou fazendo tudo. Às vezes, fico pensando se minha mãe não sente que cuido mais do meu pai do que dela e da minha irmã. Eu tento, na medida do possível, conseguir cuidar de todos”, conta.

Como Marcia trabalha fora em horário comercial, durante o dia é sua mãe que assume algumas funções em casa, como fazer comida e administrar os remédios corretos do pai e da irmã. Ainda assim, nos momentos de crise por conta do Alzheimer é só a filha que consegue acalmá-lo, então não é raro que ela tenha de sair do trabalho e ir até ele.

“Entrar no mundo dele é muito difícil. Mas, hoje, percebo que não adianta ficar batendo de frente, até porque isso não faz bem para ele. Ele tem dificuldade em reconhecer a casa. Como vive nas lembranças do passado, e a casa passou por reformas, ele se recorda dela como era antes. Às vezes ele diz que quer ir embora. O que faço, então? Coloco ele no carro e vou até a pracinha”, conta.

Seu principal desafio é acompanhar a evolução do quadro do pai, que vez ou outra esquece de que ela é sua filha – algumas vezes, chega a pensar que Marcia é sua enfermeira, sua médica e até mesmo sua esposa.

“A primeira vez que ele não me reconheceu como filha chorei umas quatro horas sem parar. Pensei que ele não ia me reconhecer mais” – Marcia Dutra

Cuidar de quem cuida

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Alzheimer é a causa mais comum de demência no mundo, representando 70% dos casos. Um relatório realizado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em conjunto com o Ministério da Saúde indica que 8,5% da população brasileira com 60 anos ou mais vive com algum quadro demencial.

A doença é comumente associada à perda da memória recente, mas por se tratar de uma condição neurodegenerativa, o Alzheimer também causa dificuldades para falar, realizar tarefas simples, mastigar e engolir, além de afetar as habilidades visuais e motoras. Confira ao lado como identificar sintomas.

Aos poucos, a pessoa diagnosticada se torna totalmente dependente de cuidados que, na maioria das vezes, é realizado pela parte feminina da família.

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 85% do trabalho do cuidado é feito por mulheres no Brasil.

A psicóloga Cárita de Oliveira atua no CER (Centro Especializado em Reabilitação), serviço do SUS em Diadema. Ela explica que, além da sobrecarga, o sentimento de culpa também é recorrente entre as pessoas cuidadoras.

“Muitas vezes, surge o desejo de viver a própria vida, seguido imediatamente pelo pensamento de que aquela pessoa precisa de cuidados. Esse conflito interno é enorme” – Cárita de Oliveira

“Sentir raiva e cansaço durante esse processo é natural e não significa que o amor pelo ente querido diminuiu. No entanto, lidar com essas emoções é um processo denso e desafiador”, afirma a psicóloga.

Além disso, o Alzheimer também causa uma espécie de apagamento, pois a pessoa diagnosticada esquece sua identidade e as características que fizeram parte da sua personalidade ao longo da vida.

“Esse apagamento progressivo é extremamente desgastante”, destaca Cárita.

O geriatra Victor Moreira ressalta que o Alzheimer afeta todo o núcleo familiar do paciente. Ele atua na URSI (Unidade de Referência à Saúde do Idoso) do Jaçanã, na zona norte de São Paulo, um dos braços do SUS no atendimento a pessoas idosas na capital paulista.

“Estudos indicam que cuidadores frequentemente enfrentam burnout [desgaste emocional causado pelo trabalho], esgotamento e a chamada síndrome de estresse do cuidador. Quando falamos em acompanhamento dos pacientes – termo mais adequado do que tratamento, pois não há uma cura –, estamos nos referindo a um processo multifatorial, no qual o cuidado com o cuidador também é essencial”, afirma.

Segundo o médico, na URSI do Jaçanã a pessoa cuidadora pode contar com a ajuda de profissionais da psicologia, grupos de apoio como o “Cuidando de Quem Cuida” e práticas terapêuticas como o Reiki, que podem oferecer um momento de alívio na rotina.

“Muitas vezes, sair para um compromisso médico é a única justificativa aceita pelo círculo familiar para que o cuidador tenha um tempo para si. Por isso, promovemos um espaço de acolhimento, com acompanhamento psicológico e grupos de apoio nos quais os participantes compartilham experiências, angústias e dificuldades, ajudando-se mutuamente”, afirma Victor.

Acompanhamento fundamental 

É na URSI do Jaçanã que Maria Gomes, de 84, faz o acompanhamento do seu quadro de Alzheimer.

Segundo sua filha Neucy Araújo, de 54, foi graças aos serviços disponíveis pelo SUS que o quadro da mãe não evoluiu de forma rápida: o diagnóstico só foi confirmado em 2024.

Porém, antes disso, Maria já era frequentadora assídua das atividades oferecidas pelo CRI (Centro de Referência do Idoso) da região.

“Quando recebemos o diagnóstico, não senti medo. Eu já acompanhava sua evolução e via sua melhora com as atividades e terapias. Sei que não há cura, mas, em comparação com outros casos, ela está bem”, afirma.

A vida de Neucy também foi alterada depois da confirmação da doença. Ela tem outros três irmãos, mas por morar no mesmo terreno que a mãe, acabou responsável pelos principais cuidados.

Neucy é diarista e precisou adequar o trabalho à nova rotina de consultas e atendimentos na URSI.

“Hoje, trabalho apenas em duas casas nos dias em que sei que ela não tem consultas ou compromissos médicos, pois ela já não consegue lembrar de todas as orientações médicas” – Neucy Araújo.

Envelhecer na quebrada é dureza

Planejar a velhice é um luxo e, às vezes, chegar até ela também. O Mapa da Desigualdade de São Paulo 2024 mostra que pessoas da periferia vivem até 24 anos a menos do que as que passam a vida em bairros mais ricos.

Essa diferença está associada a uma série de obstáculos que afetam a qualidade de vida e as possibilidades de longevidade, como a falta de acesso à moradia adequada, ao saneamento básico, à saúde e ao bem-estar.

Viver mais e com qualidade nas periferias passa por garantia de direitos básicos

Todos esses fatores impactam não apenas o diagnóstico de Alzheimer, mas a maneira como a família percebe a mudança na vida da pessoa idosa a partir do aparecimento dos sintomas, segundo a assistente social Andreia Conceição Siqueira, que também atua no CER de Diadema.

“O envelhecimento é bom porque as pessoas vivem mais, mas na periferia nem sempre isso significa viver mais com qualidade de vida. Tem gente que não tem caixa d’água, não tem comida pra colocar na mesa. A pessoa tem que trabalhar o dia todo e, às vezes, não dá tempo de olhar para o idoso”, observa Andreia.

“Só vai perceber as coisas quando estiverem muito graves, quando o idoso começar a deixar a comida queimar, não querer tomar banho ou começar a apresentar falas muito sexualizadas”, completa a assistente social.

Onde buscar ajuda? 

URSI Jaçanã (divulgação)

URSI Jaçanã (divulgação)

O atendimento ao idoso no SUS começa pela UBS (Unidade Básica de Saúde), onde é realizada uma avaliação inicial para diagnosticar fragilidades e definir um plano terapêutico adequado.

A enfermeira Thabata Cruz, gerente da URSI do Jaçanã, explica que é com base nessa avaliação que pacientes são encaminhados para o equipamento ou uma unidade do PAI (Programa Acompanhante de Idosos), iniciativa da Prefeitura de São Paulo voltada a pessoas idosas com alta vulnerabilidade social e clínica, que oferece visitas domiciliares e suporte especializado.

“As URSIs também realizam visitas por meio do NAG (Núcleo de Apoio Gerontológico). Enquanto o PAI é voltado exclusivamente para atendimentos domiciliares, as URSIs possuem um modelo ambulatorial, que pode ser complementado com visitas domiciliares para idosos que não conseguem se deslocar até o serviço”, explica.

Nesses casos, o acompanhamento é realizado por profissionais da medicina, enfermagem e assistência social. Ambos os serviços podem ser acessados simultaneamente pelo paciente, fortalecendo o cuidado contínuo e personalizado na rede pública de saúde.

Confira os endereços e detalhes aqui.

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