Texto de: André Biazoti (União de Hortas Comunitárias de São Paulo) e Valéria Macoratti (presidente da COOPERAPAS – Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo)
Desde 2010, alimentar-se de forma adequada em qualquer lugar do Brasil tornou-se um direito humano constitucional. A sigla DHAA (Direito Humano à Alimentação Adequada) não possui o adjetivo “adequada” em vão. Comer não é um ato trivial, mas imbuído de um significado político, social e cultural que transcende a qualidade nutricional do que é ingerido.
Daí o adjetivo “adequada” vir permeado de um significado forte que foi ricamente traduzido pelo Guia Alimentar da População Brasileira, lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde depois de um grande esforço interdisciplinar e multisetorial entre sociedade civil, Governo Federal, sindicatos, universidades e técnicos.
Esses princípios compuseram a construção do 1º Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade de São Paulo (PLAMSAN). Ele foi pautado no reconhecimento das inúmeras iniciativas já existentes em toda a cidade e em todas as pastas governamentais, além de sintetizar recomendações para o combate à insegurança alimentar, seja pela fome ou pela obesidade, e promoção de segurança alimentar e nutricional em todo o ciclo alimentar, da produção ao descarte.
A atual gestão do prefeito João Doria não tem promovido um diálogo adequado com o principal órgão de discussão colegiada sobre o assunto, o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN) e tampouco demonstrou esforços para a implementação do PLAMSAN.
As ações para a promoção da agricultura na cidade tiveram um enorme avanço nos últimos 5 anos, com a reconfiguração da Zona Rural do município e a constituição do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Solidário e Sustentável, dando início à elaboração participativa do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural e Agroecologia que, de forma integrada e complementar ao PLAMSAN, deve pautar a continuidade e aprimoramento das políticas públicas voltadas à agricultura e desenvolvimento rural no município.
São Paulo possui um Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP), que estabelece a criação de Casas de Agricultura Ecológica (CAE) que dão assistência técnica para os agricultores do município. Atualmente o município possui duas CAEs, uma na Zona Sul e outra na Zona Leste. Esse conjunto de ações, aliado à obrigatoriedade de introdução de alimentos orgânicos na alimentação escolar das escolas municipais, garantida pela Lei Municipal 16.140_ 2015, conferiu a São Paulo a conquista do Prêmio Major`s Challenge da Bloomberg Philanthropies com o projeto “Ligue os Pontos“, que fomenta a agricultura agroecológica local em áreas de proteção de mananciais utilizando tecnologia inovadora.
Apesar de afirmar publicamente a continuidade dessas políticas públicas, conforme matéria publicada nesta Folha de S. Paulo em 29 de outubro de 2017 “Prefeitura de São Paulo promete mais comida fresca e menos desperdício”, na realidade elas vem sendo desmontadas pela atual gestão.
Nos últimos meses, foram exonerados o secretário executivo dos Conselhos de Desenvolvimento Rural (CMDRS) e do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN) e os agrônomos das CAEs, que trabalhavam há anos junto aos agricultores do município, sem diálogo e sem apresentação de alternativas para desenvolver a assistência técnica prevista tanto no PLAMSAN quanto no atual Plano de Metas.
De forma similar, o Programa Operação Trabalho (POT), na linha Hortas e Viveiros da Comunidade, que oferecia uma bolsa-trabalho para a inclusão produtiva de agricultores urbanos no desenvolvimento das atividades, foi descontinuado, sem perspectiva de retorno. Agricultores urbanos de São Miguel Paulista, Vila Nova Esperança, Capão Redondo e até aldeias indígenas, regiões que historicamente possuem altas taxas de vulnerabilidade social e onde, possivelmente, há fome e desnutrição, deixaram de receber o recurso e agora resistem, sabe-se lá até quando, na produção de alimentos orgânicos para suas comunidades.
Na proposta de orçamento para 2018 enviado à Câmara Municipal, a Prefeitura reduziu 94% do orçamento da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional (COSAN). Como se pretende combater a fome esvaziando e sucateando o principal órgão promotor de suas políticas?
A ética pública é essa complexa construção, sem fórmulas milagrosas e sem demagogia, mas com ação continuada, sólida e com diálogo com as instituições, grupos e técnicos que possuem longo histórico de luta pelo direito à alimentação adequada para todos da cidade.
A falta de transparência, a demissão injustificada de técnicos com conhecimento da realidade, formação, acúmulo e experiência, e a ausência de diálogo com os Conselhos coloca em risco toda uma política pública que vem sendo construída ao longo de várias gestões.