Crítica do espetáculo “Kalunga Grande” feita por Nayla Aauri
É na profundidade que o tempo se torna imensurável. Não há tempo que dê conta de calar a voz de um amor profundo, menos ainda o grito de uma dor latente sem perspectiva de cura. É no silêncio do Velho que as feridas se aprofundam, inflamam, se proliferam e matam. É nele também que elas florescem em cura.
O som do raso é constante. Já ouviram? Gritos, revolta, acusações, enfrentamentos, lacrações, tombamentos, as músicas então… E quando a barulheira cessa? E quando o assunto muda? E quando o rolê termina? É aí que a dor aproveita o silêncio do tempo, ainda que sem pausa, e grita, arde, queima gente viva, sem água para aliviar, acolher, acalentar e reconstruir. Mergulhar muito fundo no mar dá medo, principalmente à noite. Vai saber o que (ainda) tem ali…
Assisti ao ensaio de “Kalunga Grande. Rios de Sangue. Corpos Negros Jogados ao Mar” em 3 de setembro de 2019, um dia em que escolhi fugir das notícias, das mensagens e das postagens. Queria estar bem e leve para vivenciar o espetáculo. Queria uma pausa no tempo para apreciar a essência manifesta em arte. Mergulhei… Mas, como a própria arte alertou aquela tarde: “o dia não teve pausa”.
“Por que você me chicoteou? Era só um chocolate”, disse o personagem Quilombo, trazendo para a cena a mais recente notícia de violência contra um menino nosso. Recente mesmo, apesar de muito parecer só uma lembrança sombria do passado. Mais uma. Mais um. Pouco adianta ignorar as notícias. Mais cedo ou mais tarde, sangue nosso espirra na gente. Desaguei…
Bom seria se Kalunga Grande fosse só encenação. Uma história triste inventada por uma mente criativa entediada em meio à paz estabelecida após muita luta. Mas Kalunga é um mergulho certeiro nas dores reais que atravessaram o mar, nas feridas reais que atravessaram o tempo.
Kalunga é a conversa acolhedora que não tivemos hoje com a mãe do Pedro Henrique, que viu seu filho de 19 anos morrer sufocado por um segurança no Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano, mas já não está mais em pauta na mídia. É o abraço que não demos hoje no pai de Gabriel Pereira Alves, que foi chamado mês passado, no dia de seu aniversário, para ver o corpo de seu filho de 18 anos, morto na Tijuca com um tiro no peito, a caminho da escola.
Kalunga Grande é a resposta que não demos para Marcos Vinícius, morto aos 14 anos, na Maré, que chegou a duvidar da intenção por trás da bala que o atingiu. Ele viu sim, meu amor, que você estava vestindo seu uniforme da escola. O que eles não veem é a hora de eliminar quem veste a sua pele.
O chamado para a luta está presente em qualquer espetáculo sério que retrate a senzala, o quilombo, as ruas, a favela. O diferencial de Kalunga Grande é que a peça nos convoca a uma cura profunda. Usa de linguagem artística para falar com sotaque de realidade: eu sei que dói, onde dói, por que dói, há quanto tempo dói e sei que não há pausa na rotina sufocante para se banhar no mar e curar as feridas no sal com beijo de Mãe.
Mas o Mar vive em nós, África vive em nós e a cura é uma arma interna e silenciosa, como a dor, que se faz tão necessária quanto a guerra para continuarmos viv@s. Ou pelo menos foi assim que eu ouvi o texto todo. Gente d’Água tem essa mania de levar tudo para lá mesmo.
Tudo isso intercalado com respiros de canto, dança e batuque, lembrando que a dor da travessia nos foi imposta, mas que a herança do solo-útero materno floriu e ressoou por aqui em manifestações ricas de sabedoria e celebrações, sempre permeadas por estratégias de sobrevivência e luta por liberdade verdadeira.
Se tem preto matando e agredindo preto é porque o Racismo venceu com folga no placar e já nos colocou para trabalhar para eles até nisso. Precisamos muito falar com os nossos sobre as dores profundas e recorrentes que se naturalizam. Exaltam e exigem a nossa força e rigidez o tempo todo, calando criminosamente o nosso direito de chorar, de pedir colo, de vivenciar os afetos sem medo da entrega, de usar a sensibilidade e de fluir em lágrimas ao invés de só represar e adoecer em silêncio. Os mitos africanos ensinam e as tragédias comprovam: água impedida de (in)fluir mata.
Convido tod@s a vivenciarem esse espetáculo. Convido-@s também a mergulharem em si, a revisitarem a própria história e a confiarem em pessoas amadas para ter aquelas conversas doloridas, de peito aberto, para acessar e curar as feridas mais profundas. Se desaguar no choro, tudo bem. Deixa água lavar. Volte com sua melhor versão, potente, divina e imbatível. Que, apesar de tudo, só sobreviva ao tempo o que te fortalece. Aprendi nas cenas reais de Kalunga Grande e na arte inventada que é a vida: “a cura vem do mar”.
Kalunga Grande é o espetáculo que surge a partir da junção do Grupo Identidade Oculta e Espaço Cultural Cazuá, e tem como caminho histórico a travessia entre a senzala e a favela, e os respectivos impactos das violências, violações e resistência na vida do povo negro e afro periférico.
Confira abaixo aonde assistir o espetáculo:
- Terça (22/10), 17h, no Espaço Cultural CITA – R. Aroldo de Azevedo, 20 – Jardim Bom Refugio
- Sábado (26/10), horário a combinar, no Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá – Estr. do Luís José da Silva, 111, Mairiporã
- Terça (29/10), 14h, no CPCD Vargem Grande – R. das Figueiras, 27 – Colônia (Zona Sul)
- Domingo (17/11), 11h, na Ocupação 9 de Julho (Vivencia teatral) – R. Álvaro de Carvalho, 427 – Bela Vista
- Sábado (23/11), às 18h, na Ocupação 9 de Julho – R. Álvaro de Carvalho, 427 – Bela Vista
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