Por Regiane Soares*
Porque as mulheres negras marcham?
Os desafios da luta diária e incessável de cada mulher negra de 2015, 2016 não são tão diferentes das resistências e anseios das mulheres negras de séculos passados. Nas pautas ecoadas nas vozes de mulheres negras nos dias atuais se ouviu e se ouve: “saúde, educação, trabalho digno…”
Seria impossível dizer que não houve avanços e, podemos falar de avanços consideráveis no que diz respeito a educação e mercado de trabalho, por exemplo. Mas como bem eternizou Jurema Wernek, “nossos passos vêm de longe…”
E são esses passos que estão ocupando todos os espaços, “enegrecendo-os”.
No dia 18 de novembro de 2015 o centro mais acentuado da desigualdade social no Brasil, o espaço branco, machista, sexista e conservador chamado Brasília, foi o palco por onde quase 30 mil mulheres negras marcharam emocionadas, com suor, luta, garra, sede, com esperanças. Marcharam com suas companheiras de estrada, filhas, mães, mulheres…
Cada rosto, cada corpo feminino negro tirava fôlego do útero, entoando palavras e frases de “ordem”, em um único objetivo: bagunçar, abalar e desmantelar à própria ordem.
Luta e sobrevivência mais do que sinônimo para essas mulheres é verbo conjugado no indicativo, conjuntivo e imperativo. Aquele dia, aquela marcha, aqueles passos, foram o reencontro e o encontro de tantos olhares, de tantos sorrisos. Mulheres negras de todo Brasil: Uni-vos!
Foi a concretização dessa união, o reabastecer de energias, perspectivas, do fortalecimento mais profundo no que diz respeito à representatividade, em cada pedacinho de avenida nos víamos, nos reconhecíamos, nos inspirávamos a um objetivo: seguir… Seguir em Marcha.
Encontrar e reverberar
A primeira Marcha das Mulheres Negras em 2015 foi a quebra definitiva com aquela que era uma de suas maiores amarras: o próprio silêncio. O desengasgar de corpos historicamente invisibilizados, o grito forte e potente dizendo: Eu existo! Nós existimos!
O escancarar da urgência de se discutir pautas específicas, de demonstrar que gênero deve ser pautado pensando na raça/etnia, pensando na classe. Gênero, raça e classe. É de Angela Davis que estamos falando. É de nossas ancestrais. É das nossas vivências: Mulher; Negra; Periférica. Os gritos fortes e potentes dizendo: “machistas, racistas, classistas não passarão”.
Esse espaço de visibilidade e de discussão colocou em pauta em cada lágrima que escorre de uma mulher negra o poder de organização, de enfrentamento, de solidariedade. O poder de desmantelar estruturas.
Em decorrência, desse poder que emanou/emana dessas mulheres nesse ano (2016) – o ano do fim do mundo – as mulheres negras organizaram marchas estaduais em referência ao 25 de julho – Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em vários estados, entre eles São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, em mais uma demonstração de organização, gestão e visibilidade a suas pautas. Mais do que o registro para os anais da história, a marcha de 2015 deixou o legado do bem viver que formou laços e parcerias.
A transformação do silêncio
Audre Lorde (1977) afirma: “[…]acima de tudo, penso eu, nós tememos a visibilidade sem a qual não podemos viver verdadeiramente. E essa visibilidade que mais nos deixa vulneráveis é também a fonte de nossa maior força”.
Dar visibilidade à interseccionalidade entre gênero, raça e classe social é dar visibilidade às pautas das mulheres negras, que ocupam ainda a base da pirâmide social no Brasil. Todas as oportunidades que se constróem a fim de discutir este tema consistem em formas de enfrentamento à estrutura social machista e racista.
Nossas vivências são específicas, nossas frases de ordem ecoam de uma outra perspectiva, enquanto mulheres brancas (negras também) priorizam a legalização do aborto, as negras priorizam o direito à vida – uma vez que o Estado é genocida e seus filhos morrem todos os dias pela “mão” do Estado.
A extensão da vida acontece no corpo e é sob o corpo negro feminino que pesam todas as estruturas de opressão que pautam essa sociedade. É na extensão do fio de cabelo, dos olhos, da boca, do nariz, dos pés, das mãos, na extensão de cada parte de si que se imprime a crueldade racista e machista. Ampliar os espaços de discussão e debate sobre esses temas é falar contra o modelo hegemônico de sociedade que exclui a população negra, que mantêm as mulheres negras na base da pirâmide social.
Precisamos falar e agir sobre a violência policial, sobre feminicídio, sobre as tentativas concretas do Estado em nos aniquilar física, psíquica e socialmente. Essas oportunidades como as 12 horas de programação on-line, organizada por mulheres negras são pontos de inflexão capazes de alterar a direção, que a sociedade nos orienta e reforça a seguir. É a luta antirracista. É a luta antissexista.
O fato e a importância das mulheres negras estarem ocupando espaços significativos é a quebra com a “ordem social”, é a proposta e concretude da ressignificação da existência e do valor dos corpos negros! O desmantelar da maquinaria da opressão.
E se isso pode nos dar esperanças?
Repito o que nos disse Elza Soares: “Eu sempre tenho esperanças. Eu acho que a esperança não morre, ela é viva. Já pensou se eu pensasse o contrário? O que seria de mim? ”
*Regiane Soares é graduanda em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), pesquisadora na área de Relações Raciais por meio do Feminismo Interseccional. Profissional da área de Educação e Cultura. Mulher negra e periférica, acadêmica e militante do Feminismo Negro.
Referências
CARNEIRO, Sueli. Raça e etnia no contexto de Beijing. In: WERNECK, Jurema. MENDONÇA, Maísa. WHITE, Evelyn C. (org). O livro da Saúde das Mulheres Negras: nossos passos vêm de longe. 2. Ed. Rio de Janeiro: Pallas / Criola, 2006
Goes, Emanuelle. Mulheres Negras em Marcha, esses passos vêm de longe. Acessado em < http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-em-marcha-esses-passos-vem-de-longe/#gs.p8jc9J4>
Lorde, Audre. A transformação do silêncio. Palestra que a escritora deu em 19977.
Soares, Elza. Eu acho que a esperança não morre. Acessado em < http://www.ceert.org.br/noticias/genero-mulher/14220/eu-acho-que-a-esperanca-nao-morre-diz-elza-soares-sobre-os-retrocessos-no-brasil>
Redação PEM