Por Marcelo Lino Jr. Edição: Thiao Borges. Arte: Rafael Cristiano
Nos anos 1950, a escritora Carolina Maria de Jesus criava quatro crianças em um barraco de madeira na extinta favela do Canindé. Localizada à margem do rio Tietê, nas cheias a comunidade se enchia de água e lama, que varriam lixo, ratos e insetos para dentro de casa.
Reconhecida pelo livro “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”, a autora narrou em páginas o cotidiano de milhares de pessoas – incluindo o drama a cada chuva forte, as condições no calor e a revolta.
Em 2025, o problema não só continua como se intensifica.
“A gente é que vai sofrer com tudo isso. Uma hora, a conta vai chegar pras autoridades. E quando chegar, a periferia estará toda submersa. E o deslizamento de terra vai levar todo mundo. Então, como essas mudanças climáticas nos afetam? De todas as formas”
Quem sentencia é Everton Oliveira, de 33 anos, comunicador e educador socioambiental do Jardim Lapena, na zona Leste de São Paulo.
“As enchentes aqui não são uma calamidade. Elas são efeitos diretos do racismo ambiental e da falta de atenção que as periferias sofrem com o poder público em relação ao desenvolvimento socioambiental mesmo”, aponta ele, que desenvolve projetos ambientais para informar a população do bairro.
Essa e outras quebradas foram construídas sob as margens do rio Tietê, que também passa por Jardim Romano, Jardim Helena, Ermelino Matarazzo e outros bairros, até se transformar no córrego entre as maiores vias da América Latina.
Por aqui, já é habitual que casas se transformem em lagos por algumas horas. O que um dia foram rios e hoje são esgotos nem sempre trilham o caminho que supostamente deviam trilhar. As águas transbordam das margens e tomam conta das ruas, muitas vezes habitadas e, quase sempre, nas periferias.
No Lapena, a organização da população local tornou possível a criação de um Plano de Bairro junto à Fundação Tide Setubal, permitindo avanços em relação às enchentes. O projeto de canalização e de um piscinão foram doados pela comunidade para a Prefeitura executar as obras.
“Não é uma iniciativa do poder público em si: são os moradores aqui do Lapena, que lutam por UBS, por escolas, por moradias dignas e também por um sistema de irrigação do rio, que não há no território”, conta Everton.
O piscinão, com as obras iniciadas em 2024, ainda está em construção. O alto volume das chuvas fez com que a nova canalização no bairro, realizada em 2020, não suportasse as águas.
No primeiro dia de fevereiro deste ano, por volta das 3h30 da manhã, os córregos transbordaram e invadiram as casas.
Quem também foi invadido por água e lama foi o galpão da Sociedade Nova Jardim Lapenna (SNJL), na rua Serra da Juruoca, que desenvolve diversas atividades culturais, educacionais e esportivas na região desde 1981.
“Não dava para ter as atividades. O galpão estava com tudo cheio de lama: materiais de escola, materiais esportivos. O campo aqui da região ficou cheio”, conta Caqui, apelido de Cleiton da Silva Santos.
Obrigada a parar as atividades, a Sociedade Nova serviu como abrigo e estoque de doações de alimentos, roupas e eletrodomésticos.
“Estamos tentando colocar as coisas no lugar”, termina Caqui.
Parte da história
A 55 quilômetros de distância, a enchente marca a história e memória de outra comunidade.
Na rua Santa Luzia, no município de Taboão da Serra (região metropolitana), também há o sofrimento com as águas.
“A última enchente havia sido em 2020, a pior. A gente perdeu equipamentos, cenário, instrumentos”, conta Washington Rocha, 35.
Ele é ator e produtor do Grupo Clariô e Espaço Clariô de Teatro, que há 19 anos recebe pessoas do município e de territórios vizinhos, como Capão Redondo, Campo Limpo e Embu das Artes. Com uma estrutura que comporta espetáculos e shows, também é destinado para oficinas culturais e educativas, saraus e aulas de capoeira.
“Mas essa [de 2025] foi a segunda pior chuva da história. Dentro do espaço, a água subiu um metro e meio. E todas as casas da rua ficaram submersas”, descreve o ator.
Dessa vez, o prejuízo do Clariô não foi tão alto e o grupo se dedicou à campanhas solidárias. “Muita gente doou e a gente conseguiu ajudar bastante pessoas ali da região”, diz Washington.
O grupo fez campanha nas redes sociais para arrecadar cestas básicas e outras doações para as pessoas da quebrada que, mais uma vez, perderam seus bens.
Chama a atenção que o piscinão ativo não deu conta de segurar as águas. “Ela é uma rua baixa e o rio cruza exatamente nela. Na esquina tem um piscinão, mas encheu tanto que transbordou”, termina o ator.
O rio em questão é o córrego Pirajussara, que também corta o Jardim Jussara, bairro próximo na zona Oeste de São Paulo.
É lá fica a sede do Encena Companhia de Teatro. Fundada em 1998, a companhia tem sua história marcada pelas águas.
“Compramos o imóvel e, um ano depois, a gente descobriu que o lugar estava em um preço razoável porque tinham as enchentes. Era um período que a gente tinha acabado de trazer um cenário grande, figurino, todas as coisas que a gente acabava de fazer na temporada de shows. E a gente perdeu tudo numa enchente”, relembra Walter Lins, 50, ator, produtor e co-fundador da companhia.
Cuidados preventivos passaram a ser parte da rotina do grupo, principalmente entre os meses de dezembro e março, época que as chuvas são mais perigosas em São Paulo. Como os outros grupos, tudo que se tem de valor ou possa queimar fica no segundo andar.
A Companhia de Teatro resolveu investigar e conversar com as pessoas da região sobre os alagamentos. Baseados nas pesquisas e vivências, o Encena realiza duas peças sobre o tema das enchentes. “Pirou, Jussara?”, de 2012, e “Jussara City, o Paraíso das Enchentes”, de 2022.
“É sempre a mesma coisa”
De volta à zona Leste, a Ocupação Cultural Mateus Santos já sofreu muito com as enchentes, assim como a população.
“Em outros anos já perdemos vários livros, equipamento de som, caixas de iluminação, equipamentos, móveis e brinquedos…”, conta Melissa Flor, 24, organizadora do espaço localizado em Ermelino Matarazzo.
”Várias pessoas perderam tudo também, pessoal que frequenta a Ocupação. A gente normalmente se junta em mutirão para ajudar na limpeza e tentar conseguir mantimentos”, complementa.
No Jardim Romano, o Coletivo Estopô Balaio tem vários projetos influenciados pelos desastres.
“Essa memória traumática de enfrentamento das enchentes foi material para desenvolver diversos trabalhos sobre essa travessia nas enchentes, sobre a vida nesse território ameaçado constantemente”, conta Ana Carolina Marinho, diretora, produtora e integrante do Coletivo.
Um dos espetáculos produzidos é chamado “A Cidade dos Rios Invisíveis”, em referência à concretização dos córregos, numa tentativa de desenvolvimento urbano – ou apenas de esconder a sujeira humana.
“O bairro, de fato, alaga. A gente precisou mobilizar uma rede de apoio para fazer esse enfrentamento das enchentes”, continua.
Ana conta que uma reforma dos córregos foi, recentemente, idealizada por iniciativa popular em um plano comunitário. Mas, ano passado, o projeto não foi finalizado.
“Apesar de ter rolado a reforma, onde o objetivo era a contenção dessas águas, o plano comunitário elaborado não foi completamente feito pela Prefeitura, e por isso o problema do alagamento não se resolveu”, denuncia.
Colaboração, Thiago Borges, Rafael Cristiano“De novo, o bairro sofreu com as enchentes, impactando o centro cultural e a vida dos moradores”