Em “Feita de Samba”, Nayra Lays abre e fecha uma experiência sonora com questões coletivas

Em “Feita de Samba”, Nayra Lays abre e fecha uma experiência sonora com questões coletivas

Álbum recém-lançado de artista do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo) traz 12 faixas que abrem espaço para “novo início”. Leia na crítica de Rafael Cristiano em mais uma seção “De Lupa na Arte”

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“E você, Nayra: você sente que tá no caminho certo?”

Com uma espécie de R&B Swingado, o novo álbum “Feita de Samba”, de Nayra Lays, começa com a faixa Etéreo, que ao meu ver soa como uma ótima introdução, uma faixa que convida a ir por uma estrada que terminará em tudo que uma mulher negra puder ser.

Ouça abaixo enquanto lê o texto:

Aqui já começo essa resenha com um elogio às letras das músicas, que formam uma espécie de mosaico de uma artista que representa não só a si mesma mas a uma parcela de mulheres negras jovens – neste caso, o de Nayra, uma feita de samba.

Seguimos para uma faixa introduzida por uma reflexão sobre o amor.

Em Casulo, Nayra tangencia um pouco a ideia de liberdade afetiva. É como se fosse exaltada a possibilidade de uma mulher negra criar relações, amar e ser amada. Aqui, esse amor é encontrado em uma relação profunda com si mesma.

Pra mim, Casulo é Osunística (algo que está imantado pelas qualidades da Yabá Òsun, Orixá que nos ensina sobre amor). É uma mulher descobrindo a divindade em si, que se completa em um casulo construído para experienciar o amor e tecer reflexões sobre ele enquanto o vive. Ressalto uma qualidade presente na arte: a de tradução e reflexão sobre o impalpável.

Casulo me soa como um órgão quente do organismo que forma esse disco.

Domingo é de fato o que anuncia, um domingo de uma família negra paulista e o samba rock já são por si só uma combinação profícua, combinada à forma sinuosa que a faixa é construída, com um refrão que convida a dança de forma imperial: “1 e 2 e 3 e 4 e pode girar”. A vontade é que chegue logo o fim de semana, onde podemos gastar as horas com passos marcados.

Alta Voltagem, parceria com Bia DOxum, que é uma artista que também vem estabelecendo uma identidade na produção artística independente, é um ponto forte no disco. O título parece algo que prenuncia o clima da música, um som sensual que vai tentando construir um flerte, uma tensão. Música-Flerte-Sinuosa, em duas vozes que juntas soam muito bem.

Nayra Lays (Crédito: Camila Tuon)

Nayra Lays (Crédito: Camila Tuon)

Falando demais é uma faceta mais pop da artista, que dá conta de construir uma mulher independente, que decide manter uma escolha de afastamento de um boy que tá se achando demais.

Em Feita de samba, faixa que dá título ao álbum, traz o ritmo afro-brasileiro anunciado logo no título e o torna uma espécie de armadura para a artista expor um pensamento e lírica que se aproxima muito das questões contemporâneas envolvendo as barreiras que artistas independentes de alguma forma precisam passar para produzir.

Daí, a necessidade de uma armadura ancestral feita de puro samba, que é a malandragem e o banzo em proporções exatas para produzir pulsão de vida.

Quando o ritmo entra se sobrepondo ao rap do início, cria uma dobra de tempo bonita, onde o novo se une ao antigo para seguir.

“Voe muito mais”

Todo o álbum é costurado por faixas/falas da artista. É sempre sobre alguma questão inerente à vida: amar, perder, viver… Isso nos aproxima mais ainda, não só da artista e de seu pensamento, mas também do universo da obra. São quase frases que nos posicionam em algum lugar que a artista quer que olhemos. Quase guias pro trabalho, que não soam explicativas de forma alguma.

O ganho é a poesia e a simplicidade.

Aurora Boreal, um som solar, parece que ativa o plexo, uma tranquilidade de uma aparente saudade que parece daquelas boas de sentir. De alguma forma me pareceu uma espécie de cicatriz, uma dor curada, com vislumbres de luzes no céu noturno.

Atlântico já me parece o contorno para uma ferida. “Quem vai sarar toda a dor? Desamor? Quem vai me levar?”.

O Atlântico é frequentemente representado nas artes feitas por pessoas negras como o espaço do trauma, o mar mediador/observador da ferida primordial que forma um corpo negro em diáspora. Me parece um diálogo com essa gama de representação do oceano.

“Contar quem sabe outro horizonte onde minha vida vale mais?”.

Como se autodefinir em um mundo como o nosso? Pensar novos mundos enquanto o nosso parece que caminha para mais um iminente fim? Mas quantos fins de mundos já vimos, não é mesmo, Nayra?

“Eu não vou me partir!”

Efeito Borboleta, final sentença. “O que que você quer fazer?”

Essa pergunta é perfeita para finalizar uma das experiências sonoras mais gratificantes dos últimos meses. Abre espaço para um novo início, uma caminhada que finda com uma abertura nova. Parece que a pergunta ganha uma direção. Eu me senti em uma estranha posição de ter que responder essa pergunta como se de alguma forma fossem minhas também as questões lançadas no álbum.

Crédito foto de capa: Camila Tuon

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