O que caracteriza algo como um documento histórico?
Quem está autorizada a registrar o passar do tempo na vida de uma sociedade? Para as integrantes do Coletivo Transação, seria uma boneca.
O ano era 2015 e era possível passar pela Associação de Moradorus do bairro do Cantinho do Céu, um dos mais afastados do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), e encontrar o Coletivo Transação ocupando uma das salas destinadas ao uso da comunidade. O coletivo era formado por jovens LGBTQIA+, em sua maioria pessoas trans.
“Fábrica de Bonecas” é um documentário feito “sem a preocupação de acertar”, como nos diz a descrição do vídeo que está disponível no Youtube. O título chama a atenção. “Boneca” é um adjetivo comum entre as travestis e mulheres trans.
O filme inicia com Luana Uchoa, integrante do coletivo, construindo uma boneca em tamanho real com material reciclável. Vemos o processo artesanal de criação de um corpo.
Na narração, a voz de Luana nos aponta qual seria a intenção por trás do título. “E se tivéssemos uma boneca que pudesse nos representar?”
É a boneca e sua capacidade de construção e criação e suas possibilidades de representar um ser humano ou a ideia de uma pessoa (como a Barbie representou por décadas uma ideia de feminilidade cis e branca, ou como as Bonecas Benguela do Grajaú e Parelheiros que representava meninas negras e indígenas.)
Agora, qual boneca anunciada pelo Transação estava sendo fabricada em 2015?
Logo após esse prólogo, o filme exibe uma sequência de registros, não só da ocupação das jovens na associação de moradorus como também nos espaços de convívio do bairro, nas ruas, nos risca-facas, na escola entre as crianças. Essas imagens são intercaladas com entrevistas que relatam a vivência de algumas delas.
Poderia me prestar aqui a uma espécie de resumo do que as meninas falam, mas acho que seria uma tentativa falha e fugiria ao que me parece ser um dos princípios do documentário: O tempo.
O que “Fábrica de Bonecas” parece fabricar é tempo, com sua quase ausência de cortes, sua dilatação temporal em cenas longas, não só para ouvir o que falam as meninas e mulheres, mas para vê-las falar por um espaço justo nos minutos, com suas pausas, trejeitos, suspiros…
Em uma espécie de autocrítica à cisgeneridade, penso que sabemos muito menos sobre o tempo, ao excluirmos pessoas trans do nosso convívio.
As entrevistadas me parecem saber usar isso a seu favor. Há desabafos, momentos de piada, de intimidade, filosofia… Ou seja, a elaboração da vida.
Logo, a ocupação na associação de moradorus do bairro me parece algo a ser registrado. Neste bairro, houve uma parcela de pessoas trans que ocuparam um espaço de representação coletiva, pensaram coletividade e comunidade, com todas as complexidades que envolvem espaços como esses, produziram vida.
Vida.
Vida.
Vida.
Vida.
…
..
.
Me parece que a “Fábrica de Bonecas” produziu uma porção de coisas. A vida é uma delas, mesmo quando há a ausência, a falta.
O documentário registrou um pedaço da vida de uma ausência futura, que com ares de melancolia bebia e ria em um risca-faca que havia na chamada rotatória do Jardim Eliana, um entrocamento de vias movimentado nessas margens da cidade.
Quem está autorizada a narrar a história?
História, essa, a oficial, a que se estuda e se ensina nas escolas?
Quem escreve os livros didáticos? Quem documenta o passar do tempo?
Quem figura nas páginas? Nas histórias? Quem fica com o passar dos anos?
Assisti esse documentário na estreia, em 2015, quase 10 anos atrás, e agora… Dessa vez, além de ser tomado por uma nostalgia, fiquei pensando que, com o passar dos anos, o próprio filme me pareceu a boneca fabricada, construída com matéria prima de vidas individuais, que vão se transformando em membros, tronco, cabeça.
E com o passar dos tempos…
Ainda…
Existe.
Assista o documentário abaixo:
Ficha técnica: Aloísio Silva Barreto, Anderson Gonçalves, Danielly Xivasquiy, Gabi Bolina, Carla Victoria, Luana Uchôa do Nascimento, Vinicius Linhares
Rafael Cristiano
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Oie