Lixões. Eles ainda não acabaram, mas mostram pra gente como repensar nossa sociedade

Lixões. Eles ainda não acabaram, mas mostram pra gente como repensar nossa sociedade

Neste artigo de opinião, a jornalista Fabiana Dias fala do descumprimento do prazo para acabar com os lixões no Brasil e os desafios e oportunidades na gestão de resíduos sólidos 

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Por Fabiana Dias*

Lixão. O plano era que em 3 de agosto de 2024 essa palavra tivesse se tornado passado no Brasil.

O plano – ele de novo – é que os resíduos do nosso modo de vida (o lixo) sejam levados para aterros sanitários, para serem recuperados, reaproveitados, tratados. Só que não.

3.291 lixões (ou aterros controlados – que estão muito mais perto de um lixão do que de um aterro) ainda ativos no Brasil. E há apenas 959 aterros sanitários, que são a melhor solução de tecnologia e o destino certo para o nosso “lixo”.

Em julho desse ano, em uma semana, eu visitei quatro lixões pra fazer uma reportagem. Não foi a primeira vez, mas essa experiência é sempre muito impactante. Concretiza pra gente o tipo de sociedade que somos. Consumo excessivo, falta de racionalidade na produção e na escolha de matérias-primas, exclusão social, superficialidade, descaso ambiental e a lista vai longe.

E onde estão os lixões? Sempre nas bordas, sempre nas periferias, quase sempre naquele ponto em que não é mais área urbana ou até na junção de territórios, em que dá aquela sensação de “não é de ninguém”.

A questão é que essa é uma perspectiva de quem olha do centro. A periferia é, sim, espaço de muita gente, de muita vida, de muita solução. Mas, sabemos bem, de muito desafio também.

Lixões deixam evidentes os desafios da nossa sociedade (foto: Fabiana Dias)

Lixões deixam evidentes os desafios da nossa sociedade (foto: Fabiana Dias)

A grande questão é como resolver o problema dos resíduos nas nossas cidades? E ela traz muitas outras: como reduzir o impacto ambiental e climático? Como entender “lixo” como recurso? Como mudar nossa lógica de consumo pra produzir menos? Como diminuir os impactos para as periferias e para as pessoas mais vulnerabilizadas?

Alguns dados são bem impactantes e ajudam a visualizar o problema (e eles são dados oficiais, do Sistema Nacional de Informação sobre a Gestão de Resíduos Sólidos, o SINIR):

– A gente gera no Brasil 80 milhões de toneladas de “lixo” por ano

– Desse total, 33 milhões de toneladas (que é 43% do total) são depositadas em “lixões”. Pensa só: são 233 estádios do Maracanã lotados, a cada ano

– Em média, cada pessoa no Brasil gera 343 kg de “lixo” por ano, o que também é um dado bem complicado porque a disparidade de consumo é enorme. Quem tem grana, consome desproporcionalmente mais do que quem não tem

– De tudo que “jogamos fora”, metade (40 milhões de toneladas) é material orgânico, 33% é reciclável (28 milhões de toneladas) e 12% é rejeito, de fato.  (E vale destacar que, do que é reciclável, apenas 4% é realmente reciclado).

Conclusão óbvia 1: aquilo que realmente precisa ser tratado (9,6 milhões de toneladas) é muito menos do que colocamos num lixão.

Conclusão óbvia 2: precisamos consumir menos e reaproveitar mais.

Conclusão óbvia 3: a reciclagem e a compostagem precisam acontecer de verdade.

Conclusão óbvia 4: o custo do “lixo” pode ser muito menor, o que significa que o dinheiro público poderia ser usado para outras demandas.

Conclusão óbvia 5: precisamos institucionalizar o trabalho de catadoras e catadores como uma solução de gestão de resíduos (Sobre isso, vale ler o artigo recente do Thiago Borges sobre a questão das cooperativas na cidade de São Paulo).

Desafios e oportunidades

Um lixão tem muitos impactos: ambientais (contaminação do solo, das águas superficiais e subterrâneas, dispersão de resíduos pelo ar, geração de gases de efeito estufa, risco de explosão, risco de deslizamento) e sociais (mau cheiro e sujeira que causa para o entorno, vetores de doenças, sobretudo para as pessoas que vivem da catação do que encontram nos lixões, seja para consumo próprio ou para vender para recicladores).

Mas se a gente de fato consegue superar esse cenário, ele também traz oportunidades.

Peter Burke, que é um historiador inglês, escreveu em 2001 um artigo sobre a história social do lixo, publicado no caderno Mais! da Folha de S. Paulo, em que ele dizia que “lixo é simplesmente material no lugar errado”. Algumas décadas depois, esse pensamento evoluiu muito.

Qual é então o lugar certo, capaz de transformar o que chamamos de lixo em recurso?

Cooperpac, cooperativa de reciclagem na periferia da zona Sul de São Paulo (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Cooperpac, cooperativa de reciclagem na periferia da zona Sul de São Paulo (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Se a gente muda a ótica e passa a tratar resíduo como recurso, a gente abre oportunidades, inclusive econômicas. O aterro sanitário é o melhor destino. Mas o melhor, mesmo, é uma composição de tecnologias e processos.

Mas e se tivéssemos de fato encerrado todos os lixões e passado a ter apenas aterros sanitários? A gente ia continuar tendo um problema imenso que é o volume de resíduos que geramos. Então, a gente precisa investir no que é chamado de “política de pré-aterro”. Pensar numa ótica de circularidade para ter produtos que gerem menos resíduos, consumir menos, reciclar de verdade e compostar (de forma caseira ou em grande escala). Outra alternativa é fazer a biodigestão dos resíduos e gerar biogás, que é uma fonte de energia.

É claro que isso é uma questão de política pública. Mas também é uma questão de educação ambiental e de atitude.

O que dá pra cada um de nós fazer de diferente?

Se os resíduos orgânicos são metade de tudo o que geramos, podemos começar por eles. Aproveitar melhor os alimentos, nos conectar com hortas urbanas, cozinhas comunitárias, compartilhar e compostar o que for possível. Gerar menos “lixo”.

E especialmente em ano de eleições municipais, escolher candidatos e candidatas que tenham projetos reais de superação do problema dos lixões e propostas para a gestão de resíduos sólidos urbanos.

Mas nem tudo é ruim. Lembra que no começo desse artigo eu contei que visitei lixões para fazer uma reportagem?

Felizmente há soluções e em breve eu vou contar sobre uma experiência muito inspiradora de um consórcio de cinco municípios que está transformando esse cenário.

O que a gente precisa saber pra entender melhor a questão

A gestão dos resíduos sólidos é responsabilidade dos municípios. Eles podem atuar individualmente ou compartilhar soluções. Mas cabe à gestão do município resolver essa questão.

Aterro sanitário é considerada a melhor tecnologia para tratar os resíduos. Ele é um local delimitado, com capacidade planejada, que compacta os resíduos e  gerencia os gases e o chorume (aquele líquido, sabe?), que permite o controle dos riscos para a saúde e o meio ambiente. Quando acaba a capacidade dele, ele pode ser fechado e a área revegetada.

Lixão é um local não planejado, onde se colocam todo tipo de resíduo, sem qualquer planejamento de capacidade ou controle de gases e chorume.

Como o “lixo” é simplesmente colocado nesse local, ele é deixado a céu aberto, ocupa muita área, é muito volumoso e o “lixo” se espalha com o vento. Atrai ratos, baratas e vários outros insetos e animais que propagam doenças. Além disso, não há nenhum controle sobre o acesso a esse espaço.

“Aterro controlado” também é uma forma inadequada de dispor os resíduos no solo. Ele funciona como um lixão, mas tem algumas melhorias operacionais, com a diferença de que as valas de resíduos são cobertas de terra (pra não atrair insetos e animais) e o acesso de pessoas ao local deve ser controlado.

A compostagem é o mecanismo de “transformar” resíduos orgânicos como cascas e sobras de alimentos (frutas, verduras, legumes) em uma espécie de “adubo” (o nome correto é condicionador de solo).

O que determina que os lixões têm que acabar? A lógica, a ciência e o bom senso seriam suficientes. É só olhar para os dados que trago nesse artigo. Mas a legislação regula isso também.

O Marco Legal do Saneamento – um conjunto de normas de regulação que tem duas leis como instrumentos principais que regulam acesso e tratamento de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos – já estabeleceu dois prazos que não conseguimos cumprir: em 2007, a legislação projetou o fim dos lixões para 2014. Não aconteceu. Em 2020, o prazo foi estendido para 2024. E não aconteceu de novo.

Realmente, não é algo simples. Precisa envolver esforços integrados, promover educação e engajamento, instituir coleta seletiva, criar centrais de triagem,  institucionalizar o trabalho de recicladores, resolver os desafios econômico-financeiros da implantação, solucionar questões legais nos municípios, selecionar e implantar tecnologias, enfim… Uma jornada, que precisa começar.

*Fabiana Dias é jornalista e escolheu trabalhar com temas de desenvolvimento sustentável, impacto social e transição ecológica justa. Atua como consultora de programas de cooperação internacional, fundações e empresas, relatando histórias de transformação e moderando diálogos transformadores. 

@fabianadias_daily / https://www.linkedin.com/in/fabiana-dias/

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