Entre o estigma e a afirmação, Funk é farol que ilumina periferias em novas formas de se colocar no mundo 

Entre o estigma e a afirmação, Funk é farol que ilumina periferias em novas formas de se colocar no mundo 

Cultura que ocupa topo das paradas musicais, movimenta economia das quebradas e é produto de exportação ganha data nacional de celebração. Presente no imaginário da quebrada, há mais por vir

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Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Montagem: Rafael Cristiano

“Hoje em dia, não tem nada mais poderoso que o funk. Vai para além da música e dos números que batem. Vai realmente pra um bagulho de vivência, de autoestima e identificação que a periferia tem”.

A fala acima é de Dayrel Teixeira, de 25 anos, morador da Favela da Compensa, em Manaus (AM). O jovem é criador da página ‘Funkeiros Cults’, que desde 2020 dialoga diretamente sobre funk, cultura e Amazônia.

Daryel, criador da página Funkeiros Cults e natural de Manaus

Daryel, criador da página Funkeiros Cults e natural de Manaus

O projeto rapidamente passou a ganhar reconhecimento através das redes sociais por relacionar clássicos da literatura ao dialeto popular e letras de músicas com o intuito de quebrar o preconceito que jovens de periferia sofrem em relação ao consumo dessas obras, evidenciando que o público não é somente objeto de estudo, mas também pessoas que pensam, produzem e consomem dos mais diversos conteúdos.

“A gente teve essa necessidade de criar alguma coisa que a gente se identificasse, tá ligado? E aí nasceu o projeto Funkeiros Cults, justamente pra gente mostrar que a periferia consegue falar sobre literatura, cinema, jornalismo, arte”, conta Dayrel.

O barulho nas redes sociais foi tanto que chamou a atenção do Museu das Favelas, em São Paulo. Aproveitando-se da primeira vez em que o Dia Nacional do Funk foi celebrado no Brasil, no último dia 12 de julho, a instituição está realizando a exposição em homenagem ao projeto de Dayrel.

A mostra ‘Funkeiros Cults’, que é gratuita e estará aberta à visitação até 29 de setembro, se dedica em retratar a cultura periférica e do funk, celebrando suas gírias, músicas, vestimentas e cortes de cabelo como verdadeiras e importantes expressões de identidade e referência. É possível visitar de terça a domingo, das 10h às 17h. O Museu das Favelas fica na avenida Rio Branco, 1269, no Campos Elíseos (centro de São Paulo). Saiba mais aqui.

Identificação

Para Humberto Epaminondas, 23, produtor audiovisual independente, o funk é algo presente no cotidiano de muitas pessoas, sobretudo nos territórios periféricos. Beto, como prefere ser chamado, entende que essa presença do gênero musical é tão intrínseca que influencia diretamente no imaginário e nas ações das pessoas nas quebradas.

“O funk representa diversos grupos sociais porque é um movimento de contracultura que consegue dialogar com quase todos os povos. Como ele está presente em nossas vidas desde muito cedo, seja na música ou na moda, dá pra dizer que o funk dita a periferia. Está presente diariamente na minha vida, e acredito que alguns aprendizados que tive a partir disso me moldaram como pessoa e como profissional”, conta.

Beto Epaminondas, filmmaker da zona Leste de São Paulo

Beto Epaminondas, filmmaker da zona Leste de São Paulo

O filmmaker avalia que o gênero musical também cumpre a função de ser porta-voz, do que é bom e do que é ruim, de uma parcela social que por vezes é negligenciada e marginalizada.

“Assim como o rap, o funk é uma forma de dar espaço e relatar situações do dia a dia, sejam elas situações de opressão e preconceitos ou até mesmo mesmo de felicidade e lazer. Todas essas questões ajudam a formar uma identidade, pois dialoga com a vivência de quem consome o funk”, diz Beto.

Dayrel segue a mesma linha de raciocínio. O jovem, que foi o curador da exposição, entende que ritmos musicais periféricos ditam a forma com que as pessoas dessas regiões se vestem, falam e se enxergam no mundo, além de valorizar questões de autoestima que são importantes para além de conceitos estéticos, também para manter a dignidade humana e se permitir que essas pessoas se possibilitem a sonhar, mesmo diante de um sistema opressor e injusto.

“O funk, pra gente que é de periferia, puxa muitas questões. Tem a questão de se identificar, de ter um sonho… O funk, o samba e outros ritmos de periferia trazem uma visão que só nós conseguimos enxergar, porque a gente vê pessoas cantando o nosso sonho, cantando músicas que dão autoestima pra gente, então acho que são uma vivência para além do movimento”, fala Dayrel.

Regionalidade e reconhecimento

Apesar da influência estadunidense em sua chegada ao Brasil, o funk é um gênero musical pensado e produzido a partir das periferias e tornou-se um dos maiores símbolos da música nacional brasileira.

Desde os bailes funks do Rio de Janeiro na década de 1980, o movimento foi majoritariamente popular. A partir de sua expansão, diversas vertentes surgiram e transformações aconteceram até chegarmos ao estágio em que hoje estamos.

Enquanto gênero musical, uma das principais características do funk é a regionalidade. A depender do território em que a música foi pensada, um tipo de sonoridade completamente diferente surgirá.

Exposição no Museu das Favelas

Exposição no Museu das Favelas

O funk de São Paulo não é o mesmo de Recife, que também não é o mesmo do Rio de Janeiro. O ritmo, os relatos e toda a construção da música se moldam e se relacionam com as comunidades a partir do local e das vivências e sonhos dos artistas.

Apesar disso, Dayrel conta que a música paulistana alcançou um nível diferente de influência, sendo em estética ou sonoridade uma das maiores referências de sua região.

“A gente vem de um local que foi muito importante pro nosso crescimento, porque querendo ou não a gente nasceu fora do eixo de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, que tem essa cultura do funk maior. Então a gente conseguiu ver todos esses funks crescendo e criando identidade. O funk de São Paulo agora, que é bruxaria, a gente conseguiu acompanhar de longe e ver a evolução. Acho que a própria galera aqui de São Paulo não tem noção do quanto a cultura deles influencia o resto do Brasil, tá ligado?”, diz.

Fato é que o funk tornou-se também um produto cultural, está em ascensão e passa por um início de processo de desestigmatização social – apesar de ainda existir um longo processo para que isso de fato aconteça.

Além do reconhecimento interno com uma data oficial que celebra a importância do gênero musical que está presente em diversas periferias Brasil adentro e da conquista do espaço para a exposição no Museu das Favelas, o funk tem influenciado cada vez mais o cenário musical pelo mundo.

Nos últimos meses diversos DJs do gênero, como Caio Prince, J4quelone e Th4ys, por exemplo, estiveram em tour pela Europa. Ramon Sucesso chegou a ter seu álbum ‘Sexta dos Crias’ avaliado com nota 7.7 pela Pitchfork, um dos mais renomados portais especializados do mercado musical, enquanto DJ Roca e DJ Vitinho Beat foram sampleados por Kanye West em lançamento recente do rapper estadunidense.

Ouça a nossa playlist abaixo:

Esse movimento de exportação de artistas é algo que empolga e possibilita que muitas portas se abram daqui em diante.

Dayrel defende que as pessoas periféricas fortaleçam cada vez mais movimentos populares em seus territórios. Assim, além do funk, outras manifestações artísticas e culturais presentes nesses espaços possam alcançar o mesmo patamar que o gênero musical.

“A gente tem que ter mais fé no movimento que estamos inseridos, não só o funk, tá ligado? Mas outras coisas também, tipo capoeira, movimento das motos, movimento da moda nas periferias, que é bem forte. A gente tem que se unir porque é nós por nós no final do dia. É periferia por periferia e temos que ter mais atenção e foco nisso, e trabalharmos pra gente construir um Brasil melhor, e quando eu digo um Brasil melhor, é para as nossas periferias”, finaliza Dayrel.

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