Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
A cada livro lido, 4 dias a menos atrás das grades. Peças de teatro, espetáculos e rodas de conversa também podem diminuir o tempo no cárcere. É isso mesmo. A diminuição é calculada por horas de atividade e entrega de relatório.
Além da remição de pena por meio do trabalho ou estudo, prevista na Lei de Execução Penal de 1984, a resolução 391 de 2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também garante a redução por meio de práticas sociais e educativas. Porém, apesar de bons resultados, essa não é a regra.
Os direitos culturais são facilitados ou dificultados a depender do raio ou da unidade prisional em que a pessoa está. Não existe um procedimento padrão e cada local define as próprias regras.
“Nossas maiores dificuldades são a falta de funcionários para acompanhar as atividades, e, muitas vezes, a incompreensão por parte dos responsáveis de que trata-se de um direito”, explica o jornalista e escritor Galeno Amorim, de 61 anos, presidente do Observatório Livro e Leitura. A organização já beneficiou mais de 9 mil pessoas privadas de liberdade com o Clube de Leitura no Cárcere.
Com mais de 30 livros lidos pelo projeto enquanto esteve detido, Carlos Andrade não conseguiu diminuir o tempo no cárcere com a leitura porque a norma ainda não estava sendo aplicada. Como trabalhava e estudava, ele antecipou a saída em 1 ano, mas poderia adiantar em mais 120 dias se a atividade cultural tivesse sido considerada.
“Mas o projeto transforma demais a vida das pessoas que passam por ele. Eu sou fruto e consequência disso”, diz Carlos, que teve a oportunidade de debater alguns títulos com os próprios autores. Hoje aos 35 anos, ele é advogado e morador de Ribeirão Preto (SP).
Para a bailarina, professora e escritora Bárbara Querino, 26, iniciativas que fazem as pessoas refletirem são barradas para não “despertar a consciência”. Moradora do Alvarenga, no distrito de Pedreira (zona Sul de São Paulo), em 2018 ela foi presa e condenada por um crime que não cometeu e do qual foi absolvida posteriormente.
Bárbara lembra que, quando esteve encarcerada, estava assistindo a uma apresentação de circo que foi interrompida por agentes que enxergaram na ação uma tentativa de formação de motim. A atividade foi levada à unidade pela Cooperativa Libertas, que desenvolve projetos sociais no cárcere e passou a atuar de outras formas depois do episódio.
“Não é interessante que as pessoas tenham ciência dos seus direitos, ainda que elas mereçam ter cultura e educação nesses espaços”, reforça Bárbara, que vê a negativa como uma estratégia de “dominação ideológica”.
Máquina de moer gente
O sistema prisional brasileiro concentra 832.295 pessoas, segundo o Anuário de Segurança Pública divulgado em julho de 2023. Desse total, 68% das pessoas são negras e 43% têm entre 18 e 29 anos
É a terceira maior população carcerária do mundo. O número supera o total de habitantes de 5.186 municípios e 3 estados da federação. Os presídios estão superlotados: faltam 236 mil vagas além da capacidade atual.
Enquanto isso, projetos de lei prometem prender mais e endurecer as penas. Recentemente, o Senado Federal aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC) que criminaliza o porte e a posse de qualquer quantidade de droga ilícita. Especialistas apontam que, se a Câmara aprovar a medida, isso vai contribuir ainda mais para o encarceramento da juventude negra e periférica.
E o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que extingue as saídas temporárias para quem está no regime semiaberto. O Presidente Lula (PT) vetou parte da proposta e garantiu a visita a familiares, mas parlamentares querem derrubar o veto.
Autor do PL, o deputado bolsonarista Bibo Nunes (PL-RS) defende que a saída temporária gera insegurança e representa um risco para a população. Mas, segundo levantamento da Folha de S. Paulo divulgado em janeiro, apenas 4,8% das pessoas que tiveram o direito à saidinha no último Natal não retornaram aos presídios: de 56.924 que usaram o benefício em 18 unidades da federação, apenas 2.741 não regressaram.
A saidinha é um benefício que está em vigor desde 1984, na aprovação da Lei de Execuções Penais, em plena ditadura militar. A medida é uma das formas previstas para ressocialização de pessoas que cometeram crimes e estão no cárcere.
A participação em atividades culturais é outra forma possível de diminuir a pena e, mais do que isso, se reinserir no convívio social.
“Mas há uma grande dependência do voluntarismo e de iniciativas de grupos da sociedade civil. Infelizmente, ações desse tipo acabam se convertendo em boas práticas apenas em algumas unidades prisionais, sem dar conta de todo sistema, pois seriam necessários investimentos públicos e ações conjuntas”, explica Léia Santos, 29, moradora do bairro do Jaraguá (zona Noroeste de São Paulo).
Doutoranda em Ciência da Informação na Universidade de São Paulo (USP), Léia é pesquisadora e coordena a iniciativa “Viajar se sair do lugar”, projeto de remição de pena por meio da leitura ao qual ela é voluntária desde 2017 e atua junto ao Centro de Detenção Provisória de Santo André (SP).
Dignidade e identidade
A média de reincidência em práticas criminosas entre quem passou pelo sistema é de 32%, segundo a pesquisa ‘Reincidência e reentrada no Brasil’, do Instituto Igarapé, publicada em maio de 2022.
Políticas públicas que garantam a dignidade no cárcere (como alimentação, vestimenta, saúde, educação e trabalho) são fundamentais para que essas taxas sejam reduzidas. E o acesso à cultura é um meio para assegurar a própria identidade.
De acordo com Léia, a prisão é sobretudo um local de perda de autonomia e dos sentidos básicos do corpo humano. Portanto, não é só da liberdade que o encarceramento priva as pessoas, mas também das escolhas cotidianas.
“Os interesses culturais que essas pessoas possam desenvolver e as escolhas, como optar pelo que lê, a descoberta de novos gostos (como o da leitura ou trabalhos manuais) e novas possibilidades (como a escrita), podem ser um meio de resgate da autonomia e da retomada do lugar de sujeito, posição igualmente afetada pelo cárcere”, comenta Léia.
Por ser artista antes do cárcere, Bárbara sempre teve a noção do quão importante é o contato com atividades culturais. A bailarina, que chegou a organizar rodas de dança junto às companheiras, acredita que o acesso à cultura e a educação podem ser caminhos para diminuir as taxas de reincidência ao apresentar novas possibilidades para quem deixa o sistema.
“Nós somos seres culturais, e antes mesmo de aprender a ler ou escrever, aprendemos a cantar uma música, a dançar ou a atuar. Eu vejo que a cultura é o principal e primeiro contato que um ser humano tem, então quando você tira isso dela, você tira até a vontade de essa pessoa aprender e ingressar na educação de uma forma um pouco mais ampla”, destaca Bárbara.
Ela passou a fazer parte dessa luta e, em 2020, fundou o projeto Vidas Carcerárias Importam. Primeiramente focada em fornecer alimentos e produtos de higiene para pessoas encarceradas e suas famílias, hoje a iniciativa realiza também oficinas e rodas de conversa em escolas, bibliotecas e associações culturais para desfazer preconceitos que rondam o assunto.
“A gente foi ensinado que o cárcere e pessoas encarceradas são monstros que não merecem estar na sociedade, não merecem educação, não merecem cultura”, comenta Bárbara.
André Santos, Thiago Borges, Rafael Cristiano“A gente precisa falar do sistema carcerário com mais humanidade, tratar as pessoas como pessoas”.