Colaboração de Thainara Sabrine e Victória da Silva. Foto de capa: Acervo Museu do Futebol
Os times de várzea, que historicamente se constroem através de luta e resistência, até hoje se mobilizam não só no esporte, mas também em levantes políticos, de economia popular e grandes promotores da cultura periférica.
No sentido literal da palavra, a “várzea” expressa algo que não é muito organizado, de baixo nível ou sem muita estrutura. Porém, esse termo fica de lado quando pensamos no popular futebol varzeano das periferias, o qual – ao contrário do que designa o nome – demonstra-se muito organizado e com potenciais que ultrapassam as barreiras sociais, políticas e econômicas estabelecidas pela desigualdade.
Há muitos anos, o futebol de várzea vem transformando realidades, tornando sonhos possíveis através do esporte e da cultura. Para pensarmos a identidade periférica, é indispensável considerá-lo, pois atualmente se evidencia em organizações de times e torcidas que surgem da comunidade e normalmente recebem o nome do próprio território. O time Morro da Paz é um exemplo disso.
Desde 2005 em atividade, o time Morro da Paz nasce na comunidade Favela da Paz, localizada no Bairro do Limão (zona Norte de São Paulo), com torcida organizada (Bonde da Favela), sede, espaço para treinos, além de receber patrocínios de comércios locais.
Entre os jogos e treinos, o time movimenta o território diariamente com projetos sociais, geração de renda e desenvolvimento local.
Estética, memória e identidade: Os significados estampados nas camisetas de futebol de várzea
Várzea como resistência
Para além do entretenimento gerado a partir do esporte, o futebol varzeano atua também como movimento político.
Segundo Alex Borges Barcellos, ex-varzeano que integra o coletivo socioeducativo Resenha Poética da Várzea, o futebol de várzea permanece vivo e como resistência nas ‘quebradas’, já que ocupa territórios com campos, quadras e sedes, afastando a especulação imobiliária e a diminuição dos bairros periféricos.
Barcellos reforça a cultura das periferias que é emitida por meio dos festivais, das confraternizações e até mesmo nas roupas e sua identidade visual. Ele afirma ser uma espécie de aquilombamento, visto que serve como resistência e exteriorização da identidade periférica.
“É um quilombo de diversas frentes… Se você abre pra comunidade, é nesse campo que faz também a festa das crianças, faz a festa junina, as crianças também podem brincar, podem correr e se divertir, ‘né?’ Eu acho que a várzea é muito além do futebol, ela consegue suprir toda essa falta de políticas públicas que o Estado deixa a desejar”, complementa Alex.
Recomendado pelo ex-varzeano, o documentário “Várzea, a bola rolada na beira do coração”, do poeta e cineasta Akins Kintê, tem muitas referências de como o futebol acontece e se mantém nas comunidades.Trata-se de um excelente produto audiovisual acerca desse esporte como parte da identidade da periferia.
Mobilizador comunitário, o ‘futebol de quebrada’ une a comunidade em volta do campo não apenas para assistir à prática esportiva, mas também como expressão territorial, geração de cultura e envolvimento, garantia da existência de espaços de lazer e esporte, e, principalmente, como movimento econômico de desenvolvimento local.
Economia popular e solidária
Uma das principais características da várzea é a tecnologia da autogestão. Geralmente, de forma independente, os times organizam seus próprios torneios e campeonatos, custeando desde a manutenção dos espaços, até os treinos e uniformes dos times.
Para isso, desenvolve-se então o que chamamos de economia popular, uma outra ferramenta que atua no futebol de várzea como um importante componente para os bairros periféricos e, nesse sentido, para o comércio local.
Isso se manifesta de muitas maneiras, ocorrendo não só dentro da organização dos jogos, mas também na lanchonete que lucra com os alimentos vendidos para a torcida, na loja que vende a chuteira para o atleta ou até mesmo nas costureiras do bairro que produzem os uniformes, criando uma rede de geração de renda e desenvolvimento local. A Uniex, para exemplificar, é uma importante marca para os jogadores e um símbolo respeitável de algo que cresceu devido ao futebol de várzea e hoje é referência nesse meio.
Barcellos completa: “A Uniex também começou ‘ali’, patrocinando os times varzeanos. Depois ela teve a chance de patrocinar o time Audax, de Osasco, quando ele disputou a final do paulista e dali pra frente ela se tornou a ‘Nike da ‘quebrada’. Hoje quando você pega os maiores times que têm na periferia, todo mundo tem o uniforme da Uniex e é uma marca nacional, que às vezes contrata as próprias costureiras da quebrada”.
Pensar a criação de redes rentáveis e circulares é uma característica da identidade periférica, que desenvolve ferramentas para possibilitar a distribuição de renda no território e fomentar o crescimento da economia de formas transversais.
Futebol de várzea fortalece identidade e gera mercado de uniformes de times periféricos
Transformando a realidade
Para além de tudo o que já possibilita, o futebol varzeano também tem um papel fundamental no futuro de jovens e no desenvolvimento de suas carreiras, pois possui também o aspecto de impulsionar e abrir caminhos para os atletas.
Regularmente, praticantes são avaliados por olheiros que podem influenciá-los a dar continuidade no esporte não só na várzea, mas em times de base e possivelmente alcançarem times oficiais do País.
Rhuan Sales, jogador do sub-21 pelo time “Andreense”, declara que o futebol é sua paixão e por isso ele se ocupa com esse esporte. Além disso, o jogador declara a divulgação de grandes competições de várzea como uma impulsionadora da periferia, pois traz um outro olhar para a região, fazendo com que seja minimamente valorizada. “É algo que vem passando de geração em geração e nunca perdeu a força”, afirma.
Nessa perspectiva, Alex assegura a importância dos torneios e competições, porque servem como uma alavanca para os bairros e municípios que permanecem firmes, por vezes, devido aos recursos que a várzea futebolística traz para o território. Ele conta que a resistência dos times de várzea é aquilo que solidifica esse esporte dentro das comunidades.
“Não tem investimento público, não tem investimento da CBF, nem do Ministério da Cultura, dos Esportes ou da Secretaria de Esportes. Hoje, você tem lugares que permanecem muitas das vezes com as associações de bairro ou CECs, que são Centros Esportivos Comunitários, que podem receber emendas parlamentares”.
A várzea emerge como um movimento multifuncional que vai além do esporte, proporciona transformações econômicas, promove a interação social, construção de equipes e fortalecimento comunitários. A interseção desses elementos cria uma rede de benefícios, não apenas no aspecto recreativo, mas também no fortalecimento dos laços sociais e na promoção de identidade e fortalecimento cultural.
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