Reportagem de André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
Com origem na China e história milenar, as pipas chegaram ao Brasil na invasão portuguesa em meados do século 16. Num primeiro momento, tinham a finalidade de alertar o perigo e passar mensagens de guerra. E com o tempo,a ferramenta virou uma das brincadeiras mais populares entre crianças e pessoas adultas de todo o País.
“É um lazer, todo mundo tem. A gente faz o que gosta por prazer, é um negócio que a gente se apega e eu me sinto bem. Chego do serviço às 18h30, tomo um banho, um café e desço pra fazer pipa. Se eu não descer pra minha lojinha, o dia não foi bom”.
É dessa forma que Márcio Sartori, de 51 anos, dono da loja Márcio Pipas, em Itaquera (na zona Leste de São Paulo), define sua paixão por uma das maiores subculturas em contexto periférico do Brasil.
Márcio, que ganha a vida a partir de seus trabalhos como serralheiro, conta que a loja de pipas é uma forma de gerar renda extra, além de uma terapia ocupacional. Todo o processo de montagem e confecção de cada uma das pipas de seu comércio é artesanal, e ao todo, o pipeiro calcula ter preparado mais de 5 mil pipas de diversos tamanhos e formatos, prontas para a para comercialização no verão.
“Já tenho minha lojinha há mais de 10 anos. Quando eu morava em apartamento não tinha espaço, então eu fazia pipas no meu quarto mesmo. Era pra mim e pros meus amigos, nem cobrava nada. Depois que mudei para uma casa, consegui montar a loja e fui evoluindo. A gente sempre quer melhorar, evoluir. Ainda quero uma loja maior, é meu sonho”, conta.
Engenhoso e acostumado a improvisar materiais desde a infância, muitos dos equipamentos utilizados pelo serralheiro para a confecção dos produtos comercializados, como carretéis de linha e rabiolas, também são fruto do reaproveitamento de peças e ferramentas.
Márcio conta que em algumas pipas, onde a confecção é um pouco mais elaborada e é realizado um trabalho de colagem dos materiais, o tempo gasto na produção pode chegar a 5 horas. Nesses casos, apesar de todo o esforço, o valor cobrado é de no máximo R$ 25.
“Às vezes o pessoal vê uma pipa de R$ 25 e fala: ‘pô, tá muito caro’. Mas ele não vê que para produzir a gente gasta tempo, material, gasolina, se desloca para longe”, desabafa o pipeiro.
Apego geracional
Para quem viveu a infância nos anos 1980 e 1990, a rua foi um lugar para se divertir. Em um período onde a tecnologia ainda não dominava os lares, a criançada se reunia pelos bairros para brincar.
Amarelinha, taco, bolinha de gude, cirandas e diversas outras brincadeiras marcaram gerações e deixam saudades até hoje em quem viveu essa época. No entanto, nenhuma delas resistiu ao tempo como as pipas, que ainda se fazem presentes nos céus de várias quebradas de São Paulo.
“Antigamente, a infância na periferia era essas coisas. Ou joga bola, ou empina pipa, ou brinca de pião e por aí vai. Pipa e futebol eram os principais. Se tivesse vento, a gente já ia correndo empinar”, conta Ricardo Felipe, 52, dono de casa e morador da Cidade Patriarca (também na zona Leste) e entusiasta das pipas desde sua infância.
Ricardo conta que há algumas décadas o bairro onde mora apresentava outras características em sua arquitetura e geografia que ajudaram a difundir a cultura de empinar pipa de forma um pouco mais acintosa na região. Por ser à margem de um rio, o terreno é plano, mas conta com algumas elevações próximas. Eram nesses locais onde os grupos de amigos se reuniam, em uma tradição que é mantida por muita gente que mora na região até os dias de hoje.
“A pipa está sempre presente nos lugares mais periféricos. Se você for analisar regiões onde tem muitos prédios, você não vê ninguém empinando nesses lugares, é sempre nos lugares onde tem menos prédio, mais casas e com espaço. Antigamente você via a cidade crescer na horizontal, hoje não. Assim, a cultura vai indo cada vez mais para longe”, avalia Ricardo.
Eternos meninos
A nostalgia pelos velhos tempos faz com que a cena dos pipas, antes tida como uma brincadeira para crianças, seja diferente hoje do que foi há 20 ou 30 anos atrás. Isso porque a maioria das pessoas que estão nas ruas são as mesmas de antes. Em sua maioria, homens adultos que enxergam na modalidade uma forma de relembrar o passado, estreitar relações de amizade e manter viva uma cultura tão emblemática para eles.
“(Aqui no bairro) tirando as que se mudaram, a grande maioria das pessoas que empinam hoje são as mesmas de antigamente e, às vezes, os filhos deles. Os mais novos, que seriam os netos, são mais tecnológicos”, conta Ricardo Felipe, que conseguiu passar a paixão adiante para seu filho Ricardo Felipe Júnior, 26.
“Quem gosta, gosta. E não é pouco. Eu fiquei muito feliz de ter passado isso para o Júnior e fico mais feliz ainda de ver que ele faz isso até hoje. É muito legal. É uma raíz, algo que vem de outras gerações. Espero que quando ele tiver um filho, também passe adiante porque é assim que a gente mantém a cultura viva”, diz Ricardo.
Júnior, que sempre esteve junto ao pai, segue os mesmos passos de seu genitor. Aos domingos, acorda pela manhã, toma um café e se encontra com amigos em frente à sua casa por volta das 7h, horário em que sobem até a laje e iniciam as atividades. Júnior conta que no bairro, pelo menos 40 pessoas se reúnem semanalmente e competem entre si. Durante as férias escolares, a atividade passa a ser diária, com as ruas cheias praticamente todos os dias da semana.
“Tem que ser um lugar com bastante espaço. É muita rabiola, a linha é cara e pesada. Todo domingo ou feriado, vai ter gente empinando com certeza. Quando é 7h30, todo mundo já tá com a pipa no alto”, conta Junior.
No cenário competitivo dos pipas existem dois contextos: o expositivo, onde exibem pipas de diferentes tamanhos a fim de comparar qual delas é a mais bonita; e o ‘combate’, quando o objetivo é contabilizar qual pipeiro cortou mais linhas ao fim do dia.
Cada lugar tem regras próprias. Na Patriarca, por exemplo, não é permitido usar linha chilena, cortante mais potente que o tradicional cerol. Caso alguém seja visto com a linha chilena, automaticamente é repreendido pelos colegas. Além disso, as pipas devem possuir o mesmo tamanho e o tempo para que se coloque uma nova pipa no alto deve ser respeitado.
“Ficam vários grupinhos espalhados por todas as ruas aqui. Todo mundo se respeita, não tem briga. No máximo o pessoal discute no grupo se alguém não seguir as regras”, conta Júnior.
Ressurgimento e identidade
De acordo com Rosana Sartori, 50, esposa de Márcio, o período de isolamento social deu um novo gás à modalidade, que esteve em baixa nos últimos anos. Ela descreve o perfil dos clientes como de pessoas mais velhas, na casa dos 45 anos, que iam com os filhos para se divertir e relembrar o passado.
“Na pandemia vendemos muito, porque as pessoas ficavam mais em casa, e aí fazia fila aqui. A gente mal dava conta de atender todo mundo. Foi um tempo que as pessoas voltaram a empinar mais. Antes, o pipa estava meio de lado. O pessoal botou aquela ‘meninice’ para fora”, conta Rosana.
O movimento foi importante para, além de pôr as pipas de volta aos céus, reforçar relações humanas em um período de profundo abatimento, dúvidas e incertezas. O contexto de socialização que a cultura carrega é um dos pontos mais emblemáticos.
Márcio conta que, para ele, as pipas fazem parte de sua identidade. De acordo com o serralheiro, é mais fácil de se relacionar e fazer amizades a partir das trocas de saberes e experiências com pipeiros que com outras pessoas em diferentes contextos.
André Santos, Thiago Borges, Rafael Cristiano“Com pipa a gente arruma amizade fácil, porque cada um tem uma história. A gente se conecta muito facilmente. O pipa é minha paixão”, ressalta Márcio.