Com curso e livro de receitas, Agentes Populares de Alimentação propõem soluções contra a fome

Com curso e livro de receitas, Agentes Populares de Alimentação propõem soluções contra a fome

Projeto político-pedagógico presente em 7 estados e no Distrito Federal tem o intuito capacitar pessoas de diferentes territórios para combater os altos índices de insegurança alimentar no Brasil

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Tempo de leitura: 9 minutos

Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

Pra fazer um bolinho de casca de batata com legumes, basta juntar 2 xícaras de cascas de batatas, 1 xícara de legumes ralados a gosto, 1 xícara de farinha de trigo, 3 ovos e 1 dente de alho picado. Lave as cascas de batata, deixe ferver e depois bata no liquidificador. Adicione legumes, ovos e salsinha e pimenta a gosto. Em seguida, coloque a farinha, misture tudo e modele os bolinhos. Leve ao forno a 200°C por 20 minutos. Pronto.

Livro de Receitas elaborado coletivamente

A receita acima é somente uma das presentes no Livro de Receitas Colaborativo, resultado da união de esforços e saberes de 6 turmas do Estado de São Paulo que fizeram parte do curso de Agentes Populares de Alimentação, promovido pelo Movimento Brasil Popular e a Escola Nacional Paulo Freire em parceria com outras instituições. Neste ano, em São Paulo, a ação foi desenvolvida em 5 bairros: Barra Funda, Boqueirão, Grajaú (que conta com 2 turmas), Jardim Peri Alto e Jardim São Savério.

A professora Izilda da Silva, de 59 anos, fez parte da turma do Jardim Peri Alto, na zona Norte. Já com o certificado de conclusão em mãos, ela conta que o interesse em participar do curso surgiu a partir da vontade de descobrir formas de combater a insegurança alimentar, uma vez que seu trabalho envolve diretamente o contato direto com pessoas e a formação para a cidadania.

Iziuda valoriza a metodologia, que estimula o uso integral dos alimentos, expandindo as possibilidades de cozinhar a partir de ingredientes que em outros momentos seriam descartados, como cascas, folhas, talos, entrecascas ou sementes.

Izilda da Silva

“O mais importante foi o conhecimento adquirido: a questão de tratar com a comida na qual eu tenho acesso, que eu posso comprar ou ganhar, e fazer daquilo um bom prato para que eu possa comer. É profundo até, né? Casca da batata, por exemplo, que é jogado fora, mas que se aproveitarmos eu posso fazer um prato perfeito para minha família”, conta Izilda.

A professora já viveu em situação de insegurança alimentar quando mais nova e que, apesar de hoje a realidade ser outra, os conhecimentos fazem lembrar os tempos mais difíceis. A partir daí, ela repensa o consumo, a produção e, sobretudo, o descarte de alimentos.Também valoriza os saberes das pessoas residentes dos territórios e que os problemas superados acabam se tornando bons conselhos.

“O melhor são as trocas, porque as pessoas têm conhecimento da própria cultura, dos locais onde elas vivem, de quem passou na vida delas. Elas passam para a gente o que fizeram na própria dificuldade: ‘olha, tem esse prato que a gente aprendeu’, e isso é muito bom”, diz Izilda.

Combate local

Além de São Paulo, o curso de Agentes Populares de Alimentação está presente no Distrito Federal e em outros 6 estados brasileiros. Existem cozinhas populares já ativas em Pernambuco, Ceará, Paraíba, Goiás, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

De acordo com a assistente social Mirian Martins, 36, militante do Movimento Brasil Popular e uma das lideranças do projeto em São Paulo, o intuito é promover um programa de formação prática e teórica de pessoas na mobilização de suas comunidades.

Essas pessoas são responsáveis por fomentar debates e trazer questões relacionadas à garantia da segurança alimentar nas periferias a partir da construção de cozinhas populares, que também assumem um papel de centro organizativo dentro dos bairros.

Mirian Martins

“Para além desse processo organizativo, temos como objetivo levar a possibilidade do trabalho e renda para os agentes, que na maioria são mulheres”, conta Mirian.

Pautadas pelo método educacional de Paulo Freire, as aulas são pensadas a partir das particularidades de cada local e dividem-se em 6 módulos, abordando desde o que é a fome até formas de viabilizar a construção de uma cozinha popular.

“Os territórios são muito diversos, cada um com sua especificidade, mas a insegurança alimentar é o ponto de convergência. Em famílias que estão em situação de vulnerabilidade social e econômica, a insegurança alimentar faz parte do cotidiano. Eles não fogem dessa realidade, pelo contrário, estão diretamente inseridos nela”, diz Mirian.

A fala da ativista se reflete em números concretos. De acordo com relatório publicado em julho deste ano pela Organização das Nações Unidas (ONU), a insegurança alimentar se agravou no Brasil após a pandemia da Covid-19, e o País voltou ao mapa da fome. Atualmente, o Brasil tem 10 milhões de pessoas desnutridas e os índices de insegurança alimentar moderada ou grave chegam a 32,8% da população (70,3 milhões de pessoas), sendo que 9,9% (21,1 milhões) não têm a garantia que vão se alimentar todos os dias.

Somente no Estado de São Paulo cerca de 6,8 milhões de pessoas estão passando fome. O número total de insegurança alimentar leve, moderada ou grave atinge 56% da população de 44 milhões de habitantes do Estado, de acordo com um estudo divulgado em 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

“O que queremos é que esses agentes sejam o pavio de mobilização popular nos seus territórios, que através deles venham outros e que, com organização, mobilização e consciência, possam mudar a realidade em que vivem. Nesse caso em específico com a alimentação, com a luta, para que naquele lugar tenha uma cozinha popular onde eles possam atuar e fazer acontecer. A cabeça pensa onde os pés pisam, e ninguém melhor que eles que sabem onde os pés estão”, discorre Mirian.

Desequilíbrio

O avanço da fome no Brasil tem diversas causas, mas as principais delas são questões socioeconômicas e a ausência de políticas públicas de enfrentamento a este problema, que atinge as classes mais pobres da sociedade. De acordo com o IBGE, 22,3% (46,2 milhões) da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza, números que ajudam a entender porque tantas pessoas ainda sofrem com incertezas em relação às próximas refeições.

Prato preparado com reaproveitamento de alimentos (foto: Walisson Rodrigues)

“A situação da insegurança alimentar coloca esse debate na agenda do momento: por que em um país onde tem grande produção de alimentos, a maioria da população vive com insegurança alimentar? A conta não fecha, e não fecha porque existe quem lucre com a fome, com o desemprego e com a miséria nesse país”, diz Mirian.

O questionamento feito por ela escancara algumas realidades: de acordo com o relatório World Food and Agriculture de 2021 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do planeta.

Além disso, se todas famílias agricultoras formassem um país, este seria o oitavo maior produtor de alimentos do mundo, de acordo com dados divulgados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Ainda assim, o país está no mapa da fome.

“Tudo é política, inclusive a fome, a falta de alimentos e a não alimentação saudável. E eles (alunos) entendem bem isso, porque vivenciam e não são ignorantes, como muitos os tratam. O povo é sábio”, conclui Mirian.

Este conteúdo faz parte da campanha Planeta Território, uma iniciativa do Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS)

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