Escritoras negras refletem sobre visibilidade de narrativas a partir do legado de primeira romancista brasileira

Escritoras negras refletem sobre visibilidade de narrativas a partir do legado de primeira romancista brasileira

Nascida no século 19, a pioneira Maria Firmina dos Reis retratou luta contra escravidão mas sofreu com apagamento do sistema racista e patriarcal. Festa Literária da Penha resgata importância da autora para gerações atuais

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Tempo de leitura: 7 minutos

Por André Santos. Edição de texto: Thiago Borges

“Eu demorei pra me aceitar enquanto poeta. São tantas invalidações, somos tão apagadas e invisibilizadas que quando alguém nos reconhece, isso já é muito pra nós. A história não corrobora para que nossos nomes sejam lembrados e nossa voz seja ecoada”.

O desabafo acima é de Luz Ribeiro, poetisa, pedagoga e uma das debatedoras participantes da FliPenha – Festa Literária da Penha, celebração anual que chega a sua 6ª edição em 2023 e visa promover a valorização e memória de importantes escritoras brasileiras.

Festa Literária da Penha (Foto: Divulgação)

Promovida na Penha de França, a FliPenha é uma iniciativa de instituições inseridas dentro do tradicional bairro da zona Leste de São Paulo com o objetivo de debater e incentivar o consumo e a produção literária na região. Em edições anteriores, mulheres como Ruth Guimarães, Gabriela Mistral, Carolina Maria de Jesus e Pagu foram lembradas e exaltadas.

Neste ano, as homenagens se direcionam à Maria Firmina dos Reis (1822-1917), mulher negra, escritora e professora pública na cidade de Guimarães, no Maranhão. Ela é considerada a primeira pessoa a publicar um romance no Brasil, segundo a Biblioteca Nacional: a obra “Úrsula”, em 1859. As atividades gratuitas e abertas ao público aconteceram em diversos equipamentos na região.

Apagamento

A fala de Luz Ribeiro é reflexo de uma difícil realidade. A estrutura colonialista e racista da sociedade historicamente promove o apagamento de pessoas negras e dificulta o acesso aos saberes e ancestralidades.

Ainda que tenham existido pessoas pioneiras, tanto o nome quanto suas realizações acabam sendo desconhecidos para grande parte da população, sendo necessário a realização de um trabalho de resgate das memórias de todo um povo.

Esquecida por décadas, a obra de Maria Firmina dos Reis só foi recuperada em 1962 pelo historiador paraibano Horácio de Almeida, em um sebo no Rio de Janeiro. Não existem registros fotográficos da escritora maranhense e seu rosto é um verdadeiro mistério. As representações imagéticas, tanto na Câmara Municipal de Guimarães quanto no Museu Histórico do Maranhão, apresentam traços “embranquecidos” e não são capazes de nos apresentar de forma fidedigna quem de fato foi a primeira romancista do país.

“A primeira pessoa a publicar um romance no Brasil é uma mulher negra. Só por isso ela deveria ter estátuas, ser estudada nas escolas, mas não é. A gente não tem uma imagem de quem foi Maria Firmina dos Reis. Não tem uma fotografia. Tudo que a gente encontra são tentativas de representação, mas não temos uma foto dela. Por aí a gente percebe o quão eficiente é o racismo em nos apagar e nos tirar o protagonismo”, diz Elizandra Souza, jornalista, poeta e debatedora da FliPenha em 2023.

“São 164 anos de publicação de literatura negra feminina neste país, e enquanto escritoras as mulheres negras são sempre apresentadas como se tivessem acabado de chegar”, completa Elizandra.

Continuidade e cenário atual

Ayô Tupinambá é escritora e cantora, e se define como “travesti, preta, gorda, bissexual, periférica e tantas outras coisas que transbordam”. Ela conta que a obra de Maria Firmino dos Reis é encorajadora pelo fato da escritora maranhense ter sido uma figura de resistência em meio à uma sociedade patriarcal e escravocrata e faz um paralelo entre o contexto vivido durante o período do século passado e o cenário da violência contra pessoas trans nos dias atuais.

“A Maria Firmino dos Reis é um exemplo a ser seguido em um momento de dificuldade. E para nós travestis, agora é um momento de muita dificuldade. A expectativa de vida de pessoas trans nesse País é de 35 anos. Mas quando há um recorte que se fala sobre negritude, a média cai para 28 anos. Na pandemia, a expectativa de vida de uma travesti negra caiu para 24 anos, a mesma dos nossos ancestrais negros na época da escravidão. A gente vive hoje aquilo que nossa ancestralidade preta vivia lá atrás”.

A luta de Maria Firmina dos Reis, que além de primeira romancista brasileira, formou-se em pedagogia aos 25 anos e foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público para ser professora do primário no Estado do Maranhão, é motivação para toda uma geração, que hoje reconhece a autora maranhense como um dos pilares principais da literatura brasileira.

A obra dela é abolicionista e exaltava pessoas escravizadas brasileiras, colocando-as em pé de igualdade e enfrentamento em relação aos abusos praticados pelas classes dominantes da época.

“A Maria Firmina, sendo uma mulher preta numa sociedade patriarcal, é uma referência de que é possível fazer essa escrita, essa arte, mesmo em um período extremamente árduo, que é o que ela viveu naquela época e o que eu vivo hoje”, conta Ayô.

É a partir desse legado que se trilham novos caminhos. O passado, o presente e o futuro se interligam e fortalecem a luta não somente pela celebração e memória de corpos dissidentes, mas pelo direito à vida destes mesmos corpos. Apesar de geralmente a descoberta pelo trabalho desenvolvido por Maria Firmina dos Reis acontecer tardiamente, o impacto de sua obra motiva sobretudo mulheres negras, que estão dispostas a colocar seus nomes na mesma prateleira da história.

“Olhar para o passado, atuar no presente e criar outras possibilidades para o futuro,  porque as coisas não estão separadas. O que a gente tá fazendo aqui hoje tá ligado com o que outras mulheres já fizeram e também vai ser um espelho do que outras pessoas vão vir a fazer”, completa Thábata Wbalojá, escritora que mora em Cidade Tiradentes, no fundão da zona Leste, e debatedora do FliPenha em 2023.

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