Em “Além do lá”, banda Aláfia projeta um território que se pá nos caiba: uma Améfrica

Em “Além do lá”, banda Aláfia projeta um território que se pá nos caiba: uma Améfrica

Uma escuta atenta do novo álbum do nos aponta um caminho aberto: não abrir mão de ouvir nosses antigues, não parar de cuidar de nosses mais noves e não parar de cantar, dançar e fazer poesia. Confira em mais uma edição da coluna "De Lupa na Arte"

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Tempo de leitura: 6 minutos

A Améfrica, lugar no mundo idealizado pela grande pensadora negra brasileira Lélia Gonzalez, por vezes ganha contornos nos horizontes desse oceano que é a diáspora. A banda Aláfia, em seu novo trabalho “Além do lá”, segue a nos mostrar contornos bonitos de uma Améfrica que pode ser projetada para vivermos de maneira civilizada.

Trago a Améfrica também como símbolo que consiga denotar a mistura sonora que vai das bigbands norte americanas, o jazz e o blues tocados em bares pequenos dos bairros negros estadunidenses, tambores tocados por toda dimensão da América do Sul e em territórios Yorubás, Nagôs, Bantus ou Jejes em África.

No meio dessas sonoridades múltiplas, existem artistas sensíveis que captam texturas sonoras, recriam, reproduzem e montam um som que, aliado a letras sinuosas e diretas com grande qualidade poética, desvelam um país Brasil que faz festa e convoca os antepassados para o diálogo – os mortos, os Irunmoles, os pais pretos, entidades que às vezes se embalam em nossos terreiros.

Começamos nessa Améfrica criada pela Aláfia, louvando a divindade da comunicação que muda o estado de presença de quem escuta sons em seu louvor. Esú é descrito com uma gama de adjetivos e sonoridades que montam um ser em constante mudança, uma forma que gradativamente se transforma em outra coisa, isso traduzido por uma sonoridade que vai se atravessando para formar aquele que lança uma pedra hoje e mata o pássaro ontem.

Depois ouvimos uma bonita saudação/quase oração à Ori, nossa divindade primeira, a cabeça.

Entramos em um “primeiro barco”, uma história que começa a ser contada pela voz de Mateus Aleluia, ouvimos a voz grave cantar sobre os Irunmoles que desceram para povoar o mundo, passamos por Vovó Cici que pega a linha da música anterior e emenda com a próxima, com seu jeito calejado de contar uma história, destaca uma mulher que não pode ficar fora de nada que se queira que dê certo.

Anuncia a deusa que vai ser narrada, em “Osun Sengese” ouvimos de forma ritmada a deusa dourada presente em África e na diáspora toda. Ouvimos o barco aportar em “Babá Ifatide Ifatamoroti” narrando que o que ouvimos foi para melhor compreendermos para onde iremos.

Em seguida, uma das canções que podemos colocar facilmente como um marco nas canções que temos sobre a figura paterna, Aláfia em “Cadê meu pai?” nos convida a olhar para esses homens sem medo, apresentando suas contradições. Quando ouvimos: “Tem uma pá de preto que eu conheço que não tem pai, tem uma pá de pai que é um bom começo, mas pra onde foi meu pai?”, sabemos que estamos entrando em território de humanização radical da figura negra.

Na sequência, “Jairinho para Jairão”, em um depoimento não tão íntimo como podemos pensar, eu e muites cabemos no Jairinho, o filho, e muitos pais cabem no Jairão.

Entramos em um “Rio vermelho” de afetos que melodicamente nos leva para uma série de sons que podem ser descritos como aquela música gostosa de dançar juntin, ou aquela para pular com a galera e gritar que “A brisa avisa que a chuva vem.”

Em “Tabu” um som que lembra aquelas que tocavam nos bailinhos de nossos antigos e antigas, destaco a naturalidade com que se usam de elementos da cultura Yorubá para descrever coisas cotidianas, muito comum entre quem vivencia uma realidade em religiões de matrizes africanas.…Que vai aparecer novamente em “Preceito” uma canção de uma beleza singela que pede um mundo em que possamos viver nossas manifestações afro-brasileiras de forma verdadeiramente livre.  “É do meu direito dizer sim!” Anielle Franco sampleada avança a ideia e amplia em seguida dizendo da realidade em que vivemos, o mito da democracia racial, que diz que somos tratades todes sem discriminação pela raça. Essa não é uma realidade de nenhum país que compõe a Améfrica.

Por fim, ressalto mãe Neide dizendo sobre como foi seu primeiro encontro com a ancestral, e Salloma Salomão grande mestre e bruxo desse território imaginado que em uma metáfora nos coloca a pensar naquelus de nós que estão lentamente se locomovendo e aquelus que chegam apressadamente em um lá.

Aliás, lá…

“Além do lá”, nome do quinto disco da banda e também da última faixa, a que arremata a experiência com a pergunta: Quem inventou lá? Esse lá, aqui em meus olhos, ganha esse contorno no horizonte. Um território que se pá nos caiba. O que podemos pensar além desse espaço que está determinado para nós enquanto sujeites? Como pensar em avançar?

A Aláfia aponta um caminho aberto: Não abrir mão de ouvir nosses antigues, não parar de cuidar de nosses mais noves e não parar de cantar, dançar e fazer poesia. Viva a  Aláfia, que continua caindo com os dezesseis búzios pra cima. ALÁFIA!

*Rafael Cristiano é designer da Periferia em Movimento, ator e dramaturgo. Formado em design gráfico pela FMU em 2012. É Ọmọ Òrìṣà de Ossanyn. Tem interesse em arte e em morrer velhinho

Fotos: Renato Nascimento

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