Por Elisabeth Botelho. Edição de Thiago Borges. Foto em destaque: Daisy Serena
Chovia na tarde de 11 de março, um sábado, sobre o Jardim São Luís (zona Sul de São Paulo). E dentro da Fábrica de Cultura localizada no bairro, a água também escorria – dessa vez, pelo rosto de Nenesurreal. Eram lágrimas de quem não pode conter a emoção ao assistir pela primeira vez o documentário “Surreal”, que destaca seu trabalho como artista do graffiti.
Em entrevista à Periferia em Movimento no dia anterior, Nene relatou que se sentia uma criança numa loja de doces, aguardando para saber o que ganharia. Assim esperava pelo documentário: um doce presente tão desejado.
Mesmo com as adversidades, escolheu não engavetar o sonho de viver da arte. Nos corres de rua, Nene foi legitimada como grafiteira.
Mulher preta retinta, lésbica e periférica, aos 56 anos ela respira e vive o grafitti. Sua existência representa as questões das mulheres pretas artistas nacionais, a inquietação diante das violências de gênero, os “nãos” que cada mulher recebe, pelo etarismo, gordofobia, a heteronormatividade e a discriminação contra pessoas LGBTQIA+.
“Eu só consigo lutar porque tenho a arte. Ela me direciona e me obriga a falar”
As gravações do projeto idealizado por Ketty Valêncio começaram em 2017 com um coletivo de mulheres. Em novembro do ano passado, a condução do trabalho foi assumida pela Oxalá Produções – formada apenas por mulheres negras. O documentário retrata a trajetória, a sensibilidade, o processo criativo e a ancestralidade que emana das obras de Nenesurreal. O projeto incluiu ainda a pintura da empena da Fábrica de Cultura com as artistas Mara Mbhali, Isa Br1sa, Ana Carla e Azenate Brazil, e o lançamento do catálogo com a sua história e artes.
Desabrochar
Nascida em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, Nene mora no bairro Jardim Paineiras desde os 4 anos de idade
“Pare e ouça o barulho do trem a vapor passando”. “Mãos vazias, nunca”. Falas como essas eram ditas pela avó de Nene, em vivências que geraram a sensibilidade para ouvir as emoções, transmiti-las e sempre estar em movimento.
Sua arte e sua história caminham juntas, não há como separar. A partir da quinta série do ensino fundamental, Nene começou a se expressar com pinturas em preto e branco, mas ao decorrer foi aplicando cores, incentivada pelo seu professor de arte da época.
O pixo veio no início da adolescência e, logo em seguida, o graffiti. Mas o processo foi interrompido por uma gravidez aos 16 anos. Durante a criação da sua filha, Janine, Nene se formou em enfermagem e passou a trabalhar como instrumentadora cirúrgica, deixando o grafitti para os fins de semana.
“Se me perguntarem o que eu estava fazendo nos anos 1990? [Eu respondo:] Estava criando a minha filha”, enfatiza.
O retorno aconteceu em 1996.
Nenesurreal ingressou em 2 faculdades de artes plásticas para refinar suas técnicas. A Casa de Hip Hop de Diadema, inaugurada em 1999, acolheu sua arte e marcou sua trajetória desde então.
Fincar raízes
Por conta do apagamento das mulheres e da discriminação com pessoas mais velhas, grandes potências que vieram antes acabam não sendo vistas e lembradas por sua importância no movimento hip hop.
Ao falarmos das mulheres pretas periféricas no graffiti, o cenário é ainda mais alarmante. Quando visualizamos uma mulher sozinha na rua grafitando, o corpo dela está vulnerabilizado, a começar pelos olhares. E se é antiético “atropelar” a arte alheia (isto é, pintar em cima de outro desenho já existente sem autorização), essa regra nem sempre é respeitada quando a artista é uma mulher.
Houve uma evolução na cena, mas ainda existem questões que precisam ser enfrentadas dentro e fora do movimento, como o próprio machismo. Não por acaso, as grafiteiras ainda lidam com as mesmas temáticas de 20 anos atrás.
Além das imposições sociais, como cuidar da família e da casa, as artistas precisam buscar formas e espaços para se sentirem pertencentes ao movimento.
“Quando vi a Nenesurreal pintando, pensei: quem é essa mulher?”, confessa a multiartista Ordalina Cândido, 78 anos, mulher preta e grafiteira, presente no lançamento do curta sobre a amiga.
Nene escolheu continuar lutando com a mesma vitalidade, onde o traço é ferramenta para se posicionar na vida e no hip hop. Encher mais lugares com graffitis é um marco e uma meta para ela.
Porém, sustentar essa escolha acarreta em dificuldades. Uma delas é o dinheiro. Faltam oportunidades, e as que chegam são graças a pessoas que se lembram da artista. Outra dificuldade é ter o devido reconhecimento.
Com o lançamento do documentário, Nenesurreal espera finalmente ser enxergada com a grandeza que sua trajetória representa para arte de rua, na resistência e no movimento.
“Tenho tudo pra parar, mas eu sou uma pessoa que quero continuar”.
A segunda exibição do documentário e disponibilização do catálogo será neste sábado (25/3), às 15h, no Casarão da Vila Guilherme (zona Norte de São Paulo), que fica na praça Oscar da Silva, 110. Mais informações no instagram dela.
A arte de Nenesurreal é única, causa desconforto, questionamento, representatividade e resistência. A obra do documentário é uma “femenagem” para uma mulher “pretagonista” em vida.
“Quero ter espaço, não quero ter que insistir pra existir”.
1 Comentário
Olá me chamo sabrina e gostaria se vcs pudessem entrar em contato com esta artista do grafite por favor .