Mães de santo periféricas celebram primeiro Dia do Candomblé com expectativa de “tempos melhores”

Mães de santo periféricas celebram primeiro Dia do Candomblé com expectativa de “tempos melhores”

Data instituída por presidente Lula sinaliza apoio no combate ao racismo religioso. Mulheres líderes de terreiro relatam casos de intolerância, mudanças ao longo do tempo e papel da internet na religião

Compartilhe!

Tempo de leitura: 10 minutos

Por André Santos (texto e entrevistas) e Vênuz Capel (entrevistas e revisão). Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges

A fala é de comemoração. “Nós estávamos a vida toda escondidos, então achei muito bom mesmo. A gente estava precisando disso. Foi um avanço na nossa vida”, diz Iya Leni de Oxumarê, com 61 anos de idade e 42 de iniciação no candomblé.

A mãe de santo do Ilê Asé Omi Demi, fundado nos anos 1960 em Guaianases (zona Leste de São Paulo), festeja o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, celebrado nesta terça-feira (21/3). A data foi instituída em janeiro, após sanção de projeto de lei do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e foi uma das primeiras ações de seu mandato. Para praticantes dos cultos de matriz africana, o ato simboliza o apoio na luta contra o racismo religioso.

Além de garantir a liberdade de crença assegurada pela Constituição Federal de 1988, a lei equiparou o crime de injúria racial ao de racismo, aumentando a pena de 2 a 5 anos de prisão a quem impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. Os crimes são inafiançáveis e imprescritíveis.

Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, em 2022 foram registradas 1.201 denúncias de ataques em razão da religião – um aumento de 45% em relação a 2020, quando o número foi de 827 queixas. Pessoas adeptas de manifestações de origem afrobrasileira, como candomblé e umbanda, estão mais vulneráveis a violências por conta da fé: os casos representaram 65% das denúncias feitas em 2020 ao Disque 100 – serviço do governo federal para receber denúncias de violações de direitos humanos.

CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR E VER AS LEGENDAS

Dias melhores

Nascido como forma de resistência ao colonialismo e apagamento histórico, o candomblé é historicamente perseguido. Hoje um Estado laico, o Brasil já teve o catolicismo como religião oficial do país, em um período em que todas as outras crenças foram proibidas e consideradas como ato criminoso, sendo impedidas por vários governos.

Iya Leni conta que, hoje em dia, as situações de intolerância contra suas crenças estão mais raras que em outras épocas. Na prática, isso significa uma tranquilidade maior para utilizar as roupas de terreiro em ações do cotidiano, como idas ao mercado ou à farmácia, algo impensável décadas atrás.

Por ser uma casa antiga – a 2ª mais longeva da zona Leste –, o Ilê Asé Omi Demi vivenciou épocas onde os níveis de violência eram maiores. “Nós tivemos um problema com um vizinho que chamava a polícia em todos os candomblés. Alguns evangélicos falavam besteira, atacavam pedras na gente. Era uma loucura! Mas, graças a Deus, isso passou. Com as novas leis, a gente tem muito mais liberdade”, diz Iya Leni.

Apesar de problemas pontuais como esse, atualmente a casa é frequentada principalmente por um público mais jovem e mantém uma relação afetiva e atuante com a vizinhança, dando sequência a um trabalho realizado há décadas.

“Esse terreiro ainda tem essa relação muito forte de ajudar muitas pessoas, sempre ajudamos, mas a gente não faz essa propaganda, né? Fazemos sopa, ajudamos com roupas. Enfim, a gente tá sempre ajudando, como meu pai de santo fazia. É o candomblé. Esse é o candomblé”, reforça Iya Leni.

Resistência e fé

“Mãe Helena, a senhora vai tocar? Não toca, não, porque falaram que vão entrar e quebrar tudo”.

Esse era o questionamento de filhas, filhos e filhes de santo do Terreiro de Candomblé Nação Ketu Ilê Forikan Axé Oxolufãn, no Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. O medo era fruto das promessas feitas pelos vizinhos, que não aceitavam a presença do candomblé na região.

“’Vou tocar e quero ver quebrar! Eu tô dentro do meu Axé, e daqui eu não vou sair. Eu vou tocar sim!’. Se eu tivesse fraquejado, essas pessoas iam querer invadir a minha casa. Eu falei: não, vamos firme”, relembra Iya Helena, 74, mãe de santo e iniciada desde os 12 anos de idade.

Nascida na Bahia, a ialorixá veio para São Paulo aos 15 anos, e lembra que o contato com o candomblé se deu antes mesmo da mudança acontecer. Criada em uma família evangélica no interior baiano, passou a ter visões, como ela mesma descreve, que a fizeram começar a conversar sobre esses acontecimentos com seu tio, que era pastor. No fim, ele aconselhou a seguir seu destino.

“Ele ficava de madrugada  lendo a bíblia e dizia: ‘filha, olha essa palavra’. Eu amava, eu adorava, achava lindo, mas eu sentia que algo me chamava para outro caminho desde o começo”, relembra.

Foram muitas dificuldades e percalços durante sua vida, que ainda não terminaram. Hoje, Iya Helena enfrenta mais uma: manter a casa em que se estabeleceu há cerca de 25 anos. Com problemas estruturais na laje, o local sofre em períodos de chuva e precisa de algumas reformas, que não saem do papel por falta de recursos. O terreiro inclusive está promovendo uma campanha de arrecadação com a intenção de viabilizar financeiramente as reformas necessárias, e você pode colaborar entrando em contato com 11 97542-5407.

“Os filhos que podem estão dando a mensalidade, que é R$ 100. Mas mesmo assim não dá [pra manter], porque o custo das coisas tá muito alto. Eu tô lutando para poder comprar tudo, porque é muito caro. E tudo isso aqui eu que fiz, e foi sozinha. Eu recebo um benefício do LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), que eu divido e ajeito para poder cultuar os orixás, porque eu amo demais os orixás, sinto ferver nas minhas veias” revela.

Iya Helena sonha com o reconhecimento e tombamento do terreiro como patrimônio cultural, que tem o intuito de preservar a memória e a ancestralidade, pilares fundamentais para a preservação das tradições iorubás.

“Enquanto eu tiver vida, e quando eu não tiver mais, eu espero que o grande Pai Oxalá envie pessoas para que dê continuidade. A gente faz os melhoramentos, tudo que tem que ser feito, e deixa uma coisa bonita para as pessoas visitarem”, conclui.

Candomblé digital

Se por um lado, as leis tentam responder a situações concretas do dia a dia, como a violência, por outro a internet cria ou reforça imaginários sobre as crenças. Com o potencial de fazer com que qualquer informação chegue a milhões de pessoas de maneira viral, a ferramenta é controversa.

Dentro desse universo digital, assim como em praticamente todos os segmentos da vida moderna, existem influencers que promovem debates sobre religiosidades de matriz africana, apresentando detalhes das práticas e do dia a dia por meio das redes sociais.

Não há um consenso em relação à como a comunidade praticante enxerga isso. Iya Helena prefere o ritmo dos tempos mais antigos, se diz apegada ao tradicionalismo e contrária a qualquer compartilhamento envolvendo os rituais na internet, uma vez que o candomblé é envolto de mistérios e descobertas que só o tempo e a participação podem revelar.

“É um escândalo. Desrespeito. Falta de Rumbê. Orixá é segredo e encanto. Eu bato foto pra dentro do axé. Não aceito que ninguém chegue aqui com o celular pra ficar batendo foto. E se eu ver, peço para não bater. Tem minha autorização só pra ficar dentro do axé”, conta a Iya Helena.

Na contramão disso, Iya Leni (que se refere a si mesma como dona de um espírito jovem) é adepta do uso da internet, desde que feito de maneira consciente, até para dialogar e educar as gerações mais novas. A ialorixá inclusive possui um canal no youtube chamado Cozinhando com Yáyá, em que apresenta receitas culinárias.

“Eu, no meu pensar, acho que todos têm que se dar a mão e começar a ajudar, sem criticar, sem achar que um é melhor que o outro, sem achar que nós não vamos conseguir mudar e nos unir. Nós temos que falar do candomblé e ajudar as pessoas”, avalia.

A ialorixá acredita que as ferramentas digitais podem fortalecer a comunidade, permitem organizar reuniões e congressos, além de divulgar ideias e ações. “As melhorias eu acho que começam daí: dos jovens. Porque nós que já temos mais idade já aprendemos o básico, e aprendemos mais um pouquinho todo dia. A se comportar, ter um bom coração, a lidar com o ser humano. E os jovens vêm aprendendo isso com a gente, né?”, completa.

, , , , ,

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Compartilhe:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Comente usando o facebook

Por André Santos (texto e entrevistas) e Vênuz Capel (entrevistas e revisão). Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges

A fala é de comemoração. “Nós estávamos a vida toda escondidos, então achei muito bom mesmo. A gente estava precisando disso. Foi um avanço na nossa vida”, diz Iya Leni de Oxumarê, com 61 anos de idade e 42 de iniciação no candomblé.

A mãe de santo do Ilê Asé Omi Demi, fundado nos anos 1960 em Guaianases (zona Leste de São Paulo), festeja o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, celebrado nesta terça-feira (21/3). A data foi instituída em janeiro, após sanção de projeto de lei do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e foi uma das primeiras ações de seu mandato. Para praticantes dos cultos de matriz africana, o ato simboliza o apoio na luta contra o racismo religioso.

Além de garantir a liberdade de crença assegurada pela Constituição Federal de 1988, a lei equiparou o crime de injúria racial ao de racismo, aumentando a pena de 2 a 5 anos de prisão a quem impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. Os crimes são inafiançáveis e imprescritíveis.

Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, em 2022 foram registradas 1.201 denúncias de ataques em razão da religião – um aumento de 45% em relação a 2020, quando o número foi de 827 queixas. Pessoas adeptas de manifestações de origem afrobrasileira, como candomblé e umbanda, estão mais vulneráveis a violências por conta da fé: os casos representaram 65% das denúncias feitas em 2020 ao Disque 100 – serviço do governo federal para receber denúncias de violações de direitos humanos.

CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR E VER AS LEGENDAS

Dias melhores

Nascido como forma de resistência ao colonialismo e apagamento histórico, o candomblé é historicamente perseguido. Hoje um Estado laico, o Brasil já teve o catolicismo como religião oficial do país, em um período em que todas as outras crenças foram proibidas e consideradas como ato criminoso, sendo impedidas por vários governos.

Iya Leni conta que, hoje em dia, as situações de intolerância contra suas crenças estão mais raras que em outras épocas. Na prática, isso significa uma tranquilidade maior para utilizar as roupas de terreiro em ações do cotidiano, como idas ao mercado ou à farmácia, algo impensável décadas atrás.

Por ser uma casa antiga – a 2ª mais longeva da zona Leste –, o Ilê Asé Omi Demi vivenciou épocas onde os níveis de violência eram maiores. “Nós tivemos um problema com um vizinho que chamava a polícia em todos os candomblés. Alguns evangélicos falavam besteira, atacavam pedras na gente. Era uma loucura! Mas, graças a Deus, isso passou. Com as novas leis, a gente tem muito mais liberdade”, diz Iya Leni.

Apesar de problemas pontuais como esse, atualmente a casa é frequentada principalmente por um público mais jovem e mantém uma relação afetiva e atuante com a vizinhança, dando sequência a um trabalho realizado há décadas.

“Esse terreiro ainda tem essa relação muito forte de ajudar muitas pessoas, sempre ajudamos, mas a gente não faz essa propaganda, né? Fazemos sopa, ajudamos com roupas. Enfim, a gente tá sempre ajudando, como meu pai de santo fazia. É o candomblé. Esse é o candomblé”, reforça Iya Leni.

Resistência e fé

“Mãe Helena, a senhora vai tocar? Não toca, não, porque falaram que vão entrar e quebrar tudo”.

Esse era o questionamento de filhas, filhos e filhes de santo do Terreiro de Candomblé Nação Ketu Ilê Forikan Axé Oxolufãn, no Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. O medo era fruto das promessas feitas pelos vizinhos, que não aceitavam a presença do candomblé na região.

“’Vou tocar e quero ver quebrar! Eu tô dentro do meu Axé, e daqui eu não vou sair. Eu vou tocar sim!’. Se eu tivesse fraquejado, essas pessoas iam querer invadir a minha casa. Eu falei: não, vamos firme”, relembra Iya Helena, 74, mãe de santo e iniciada desde os 12 anos de idade.

Nascida na Bahia, a ialorixá veio para São Paulo aos 15 anos, e lembra que o contato com o candomblé se deu antes mesmo da mudança acontecer. Criada em uma família evangélica no interior baiano, passou a ter visões, como ela mesma descreve, que a fizeram começar a conversar sobre esses acontecimentos com seu tio, que era pastor. No fim, ele aconselhou a seguir seu destino.

“Ele ficava de madrugada  lendo a bíblia e dizia: ‘filha, olha essa palavra’. Eu amava, eu adorava, achava lindo, mas eu sentia que algo me chamava para outro caminho desde o começo”, relembra.

Foram muitas dificuldades e percalços durante sua vida, que ainda não terminaram. Hoje, Iya Helena enfrenta mais uma: manter a casa em que se estabeleceu há cerca de 25 anos. Com problemas estruturais na laje, o local sofre em períodos de chuva e precisa de algumas reformas, que não saem do papel por falta de recursos. O terreiro inclusive está promovendo uma campanha de arrecadação com a intenção de viabilizar financeiramente as reformas necessárias, e você pode colaborar entrando em contato com 11 97542-5407.

“Os filhos que podem estão dando a mensalidade, que é R$ 100. Mas mesmo assim não dá [pra manter], porque o custo das coisas tá muito alto. Eu tô lutando para poder comprar tudo, porque é muito caro. E tudo isso aqui eu que fiz, e foi sozinha. Eu recebo um benefício do LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), que eu divido e ajeito para poder cultuar os orixás, porque eu amo demais os orixás, sinto ferver nas minhas veias” revela.

Iya Helena sonha com o reconhecimento e tombamento do terreiro como patrimônio cultural, que tem o intuito de preservar a memória e a ancestralidade, pilares fundamentais para a preservação das tradições iorubás.

“Enquanto eu tiver vida, e quando eu não tiver mais, eu espero que o grande Pai Oxalá envie pessoas para que dê continuidade. A gente faz os melhoramentos, tudo que tem que ser feito, e deixa uma coisa bonita para as pessoas visitarem”, conclui.

Candomblé digital

Se por um lado, as leis tentam responder a situações concretas do dia a dia, como a violência, por outro a internet cria ou reforça imaginários sobre as crenças. Com o potencial de fazer com que qualquer informação chegue a milhões de pessoas de maneira viral, a ferramenta é controversa.

Dentro desse universo digital, assim como em praticamente todos os segmentos da vida moderna, existem influencers que promovem debates sobre religiosidades de matriz africana, apresentando detalhes das práticas e do dia a dia por meio das redes sociais.

Não há um consenso em relação à como a comunidade praticante enxerga isso. Iya Helena prefere o ritmo dos tempos mais antigos, se diz apegada ao tradicionalismo e contrária a qualquer compartilhamento envolvendo os rituais na internet, uma vez que o candomblé é envolto de mistérios e descobertas que só o tempo e a participação podem revelar.

“É um escândalo. Desrespeito. Falta de Rumbê. Orixá é segredo e encanto. Eu bato foto pra dentro do axé. Não aceito que ninguém chegue aqui com o celular pra ficar batendo foto. E se eu ver, peço para não bater. Tem minha autorização só pra ficar dentro do axé”, conta a Iya Helena.

Na contramão disso, Iya Leni (que se refere a si mesma como dona de um espírito jovem) é adepta do uso da internet, desde que feito de maneira consciente, até para dialogar e educar as gerações mais novas. A ialorixá inclusive possui um canal no youtube chamado Cozinhando com Yáyá, em que apresenta receitas culinárias.

“Eu, no meu pensar, acho que todos têm que se dar a mão e começar a ajudar, sem criticar, sem achar que um é melhor que o outro, sem achar que nós não vamos conseguir mudar e nos unir. Nós temos que falar do candomblé e ajudar as pessoas”, avalia.

A ialorixá acredita que as ferramentas digitais podem fortalecer a comunidade, permitem organizar reuniões e congressos, além de divulgar ideias e ações. “As melhorias eu acho que começam daí: dos jovens. Porque nós que já temos mais idade já aprendemos o básico, e aprendemos mais um pouquinho todo dia. A se comportar, ter um bom coração, a lidar com o ser humano. E os jovens vêm aprendendo isso com a gente, né?”, completa.

, , , , ,

Compartilhe:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Comente usando o facebook

Apoie!
Pular para o conteúdo