São Paulo, madrugada mais fria do ano. Os termômetros registram 7ºC, mas o vento faz parecer que está ainda mais congelante. Numa noite como essa, é comum que a procura de albergues por pessoas em situação de rua aumente. E no Extremo Sul da cidade de São Paulo, onde não há esse tipo de serviço, busca-se ajuda em quem abrir a porta. “A gente dá um jeito para as pessoas não morrerem de frio, porque essa é a questão”, diz Rodrigo Carancho, gerente do CAPS AD no Grajaú.
Este Centro de Atenção Psicossocial é um equipamento de saúde da Prefeitura que, teoricamente, não teria obrigação de abrigar pessoas. Mas a equipe improvisa camas com uso de colchonetes, pufes, sofás e cobertores para dar conta da emergência. “É um tipo de violência que vai sendo produzido, inclusive pelo próprio Estado”, ressalta Rodrigo.
Com apenas 3 anos de funcionamento, essa unidade do CAPS AD no Grajaú tem notado uma procura crescente de pessoas que não necessariamente fazem uso problemático de álcool e outras drogas, que seriam o público prioritário.
“Isso tem a ver com um plano de produção de crise, de violência, de exclusão, de segregação, de racismo e que bate na nossa porta todo dia”, observa Rodrigo.
Por isso, ele diz que é necessário defender políticas públicas efetivas e fortalecer a luta antimanicomial, que é celebrada nesta quarta-feira (18/5) e que tem a ver com o cotidiano vivido nas periferias. Nesta tarde, profissionais de saúde e ativistas realizam um ato na avenida Paulista em defesa da saúde pública.
O que a luta antimanicomial tem a ver comigo?
A data marca as mobilizações pelo fechamento de manicômios e a criação de novas leis, com a implementação de uma rede de saúde mental e a instauração de novas práticas por meio da reforma psiquiátrica, que fechou manicômios e abriu centros de tratamento comunitários.
Desde a inauguração do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro, em 1852, no Rio de Janeiro, o País seguia uma lógica de separação de pessoas consideradas “loucas” do convívio social para atendimento em instituições asilares – os chamados hospícios ou manicômios. Esses centros realizaram inúmeros experimentos com as pessoas internadas, com doses altas de sedativos e sessões de eletrochoque, que raramente “curavam” e poderiam romper com as habilidades sociais que essas pessoas tinham desenvolvido. Além dos quadros psicóticos, mulheres não submissas, pessoas LGBTQIA+ ou quem mais fugisse às normas da sociedade vigente poderiam ser internadas num desses locais.
Nos anos 1980, final da ditadura militar, a pauta da saúde pública ganhou força e levou à construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Na mesma época, profissionais problematizavam o tratamento dado a pessoas com sofrimento mental. A luta antimanicomial propõe uma lógica de cuidado baseada na vida comunitária e na identidade do território de cada pessoa. Em 1989, houve o fechamento da Casa Anchieta, em Santos (SP), o primeiro hospital psiquiátrico a ser fechado no Brasil. As pessoas que eram internadas lá foram realocadas para moradias bancadas pelo Estado e reintegradas ao convívio social.
Essa experiência resultou nos CAPS, que foram implementados depois da reforma psiquiátrica promulgada em 2001, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Hoje, os CAPS são divididos em categorias e níveis de complexidade. Na cidade de São Paulo, existem 97 unidades do CAPS que atendem com acolhimento parcial ou integral, sendo 32 voltados para crianças e adolescentes, 33 para adultos e 32 exclusivos para o atendimento em álcool e drogas. Confira o endereço mais próximo clicando aqui.
Não tem serviço que dê conta
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental se dá com o equilíbrio entre saúde física, emocional e o bem estar social – algo complexo de se atingir, principalmente se considerarmos a classe social e as questões de raça e gênero que atravessam cada indivíduo. Por isso, Rodrigo define saúde mental como a capacidade de desejar. “Tem a ver com a capacidade de criar, de compreender os seus limites e negociar com eles, de negociar com suas próprias sombras e ainda assim continuar caminhando, desejando”, diz ele.
Ao contrário do senso comum, saúde mental não é meramente o oposto da doença. Ela está relacionada a aspectos sociais que produzem sofrimentos. “As pessoas sofrem de ansiedade. Daí, a gente começa a conversar com essas pessoas e descobre que elas perderam o emprego na pandemia, tiveram perda da casa, às vezes passaram 2 ou 3 dias sem comer, o marido morreu de forma violenta…”, exeplifica Rodrigo.
Isso é decorrente de um projeto social que não privilegia a promoção da saúde e se reflete diretamente em populações periféricas ou de regiões mais afastadas dos grandes centros, e que impacta de formas distintas a depender da classe social, do gênero e da raça da pessoa.
“A nossa sociedade é produtora de sintomas. Isso vai construindo subjetividades, com modos de ser e de fazer que produzem sintomas coletivos. (…) A aceleração, a ansiedade, a frustração por não conseguir se adequar a determinada imagem produzem isolamento, sofrimento e depressão”.
Rodrigo aponta ainda que há uma solidão intensa por trás disso, fruto do desamparo – seja por uma rede de apoio familiar ou de amizade, ou seja pelo próprio Estado, que não alcança essas pessoas por meio das políticas públicas. “É uma solidão que é não é aplacada pela multidão”, diz ele.
Não há serviço especializado que dê conta de todas essas demandas. “Como a gente conversa sobre saúde mental se a pessoa não tem o que comer?”, continua.
Combater os manicômios
Mesmo com a reforma psiquiátrica, Rodrigo observa que a lógica manicominal não foi totalmente desmontada. Além de muitos hospitais continuarem existindo, essas práticas seguem se reinventando, hoje principalmente com as clínicas particulares e as comunidades terapêuticas ligadas a igrejas e grupos religiosos.
Com o início do governo Temer em 2016 e, especialmente no governo Bolsonaro, a partir de 2019, o confinamento ganhou força em detrimento ao convívio no cuidado de quem tem algum sofrimento mental. Enquanto paralisa a ampliação de rede de atenção, o Ministério da Saúde lança editais voltados a instituições asilares.
“Toda essa miséria produzida e todo esse modo de funcionar do governo, que é violento, vai chegando na nossa porta produzindo doenças e sofrimento na população”, salienta Rodrigo.
Desde sua abertura, 2,5 mil pessoas já passaram pelo CAPS AD Grajaú e 300 seguem em acompanhamento, além do suporte que o equipamento presta a serviços de atenção básica, como os posts de saúde. Na região, há unidades básicas de básica (UBS) que têm filas de até 800 pessoas apenas aguardando a troca de receita de remédios psiquiátricos – não há um acompanhamento mais detalhado da situação.
“A gente precisa pensar em políticas públicas muito fortes, porque hoje o movimento que está sendo construído é de enfraquecimento, de modo que as pessoas se tornem trabalhadores obedientes e bons consumidores dentro do seu limite de poder econômico”, completa.
Thiago Borges