O dia virou noite no Extremo Sul de São Paulo. A chuva ameaça cair após intenso calor, mas as gêmeas Raíssa e Rayane, de três anos, não se importam com os trovões e brincam na terra sob o olhar do pai Genildo Tavares dos Santos, 57. Ele apressa as pequenas para ir embora, afinal ventos e raios podem destelhar o barraco e queimar os poucos eletrodomésticos.
As incertezas trazidas pelo clima não são as únicas que angustiam Genildo. Como ele, desde dezembro mais de 800 famílias sem teto aguardam decisão judicial sobre o futuro do Jardim da União, uma ocupação por moradia localizada no distrito do Grajaú.
Até oito meses atrás, Genildo morava com a mulher, as gêmeas e outros dois filhos no Jardim Iporã, bairro vizinho à ocupação, onde teve “sorte” de alugar um quarto-e-cozinha por R$ 250. Em geral, o aluguel de dois cômodos não fica por menos de R$ 400 na região, que está entre as campeãs da especulação imobiliária.
Entre janeiro e novembro de 2013, o valor do metro quadrado subiu 4,95% em 112 bairros da cidade de São Paulo, segundo o ZAP Imóveis. As maiores altas foram registradas em bairros periféricos. Com aumento de 20,86% no período, o Grajaú ficou em terceiro lugar nesse ranking, atrás apenas de Sapopemba (22,40%) e Jaraguá (23,82%).
O aperto no orçamento e a derrubada da tarifa do transporte nas manifestações de junho de 2013 motivaram milhares de moradores a ocupar mais de 20 terrenos ociosos, segundo movimentos da região. Poucas ocupações resistiram às reintegrações de posse, entre elas o Jardim da União, que sofreu cinco despejos violentos.
Após diversos protestos da periferia ao centro, o povo dessa ocupação conseguiu suspender novas desocupações durante 2014. A área pertence à Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) e já seria destinada à construção de moradias populares.
Com a luta da população, as próprias secretarias da habitação do município e do estado de São Paulo solicitaram a suspensão de uma nova reintegração de posse. Porém, a Justiça determinou análise do Ministério Público antes de dar um parecer a respeito e, dependendo da decisão, um novo despejo pode acontecer a qualquer momento, segundo o movimento Redes de Comunidades do Extremo Sul.
Essa possibilidade é tema constante das assembleias semanais realizadas na ocupação. Apesar do impasse, os moradores se organizam e movimentam.
O Jardim da União ganha ruas e praças, e uma delas é cuidada por Dionísio Santos, 53, que mantém a grama aparada e construiu um palco onde acontecem shows de forró nos finais de semana. O baiano de Salvador também usa a experiência em escolinhas de futebol para ensinar a molecada a jogar bola.
Cada pequena conquista fortalece sua luta. “Nós tamo aqui, mas não queremos nada de graça”, ressalta Dionísio. “O político quer que a gente vote, mas não quer que a gente tenha endereço”.
Mais do que um teto e um endereço, Sonia Santos Freitas, 49, busca dignidade e participa de projetos desenvolvidos pelos próprios vizinhos. “Hablo un poquito de español”, ela ri, após comentar sobre as aulas que acontecem na biblioteca da comunidade. Sem condições de pagar R$ 450 em dois cômodos no Jardim Icaraí, há nove meses ela se mudou com marido, filha, genro e neto para a ocupação. “Aqui dentro nós sofremos tanto quanto lá fora, porque se lá não pagarmos o aluguel também seremos despejados”, diz ela, que hoje é uma das coordenadoras do movimento.
“Nós por nós”
Os moradores criam soluções para resolver seus próprios problemas, como a falta de emprego formal ou a coleta seletiva. Assim surgiu em setembro do ano passado a cooperativa de reciclagem Jardim da União, que gera renda ao mesmo tempo em que estimula o destino correto do lixo. Três funcionários coletam vidros, garrafas PET, latas de alumínio e outros materiais recicláveis dentro e fora da ocupação, enquanto outras cinco mulheres separam os itens para revender.
“Antes eu precisava cuidar de crianças pra ganhar um dinheiro, e ainda tinha que pagar aluguel”, diz Aline Maria, 54, que morava com dois filhos em uma casa alugada por R$ 400 na Vila Natal. “Hoje, tiro minha renda da reciclagem. Trabalho é o que não falta”, completa.
Aldenira Aguiar Amarante, 43, também ampliou suas perspectivas. Antes de chegar à ocupação, ela vivia com o marido e quatro filhos em uma casa alugada por R$ 650 em Parelheiros. “Montei um barraco de lona e falei: ‘Aqui, eu vou conseguir minha casa’”, lembra. Mais do que isso, Aldenira (que nunca havia pisado numa escola) começou a estudar e já cursa o oitavo ano do ensino fundamental. “Aconteceu uma transformação na minha vida”.
Conhecida como Sorriso, ela também se engajou em outros projetos da ocupação, como a creche “Filhos da Luta”. Construído com dinheiro de vaquinha em outubro do ano passado, o espaço funciona de segunda à sexta, das 08h às 17h, e já atendeu até 17 crianças entre dez meses e quatro anos de idade. Os pais pagam R$ 100 por mês para cobrir os gastos com alimentação, limpeza e uma ajuda de custo para as quatro educadoras que se revezam no trabalho.
“A creche é importante porque minha mulher trabalha fora, então eu deixo as crianças aqui e arrumo a casa sossegado, lavo a roupa, faço comida”, observa Genildo, pai das gêmeas Raíssa e Rayane. A chuva que o angustiava acabou não caindo naquele dia. Já o direito à moradia continua incerto, apesar de todas as iniciativas que fortalecem o Jardim da União. “Mesmo assim, tenho muita confiança de que vamos conseguir ficar”, crê Genildo. Seria a ameaça de despejo uma nuvem passageira?
Thiago Borges