Por Letícia Padilha*
Orientação de reportagem e edição de texto: Gisele Brito. Artes: Rafael Cristiano
“Menstruo desde os 11 anos, infelizmente”.
Essa foi a resposta automática de Juliana Sales, uma produtora musical de 26 anos, moradora do Itaim Paulista, zona Leste de São Paulo. Assim como na fala dela, o “infelizmente” apareceu em todas as respostas das pessoas entrevistadas para esta reportagem. Isso era esperado, já que segundo uma pesquisa do Datafolha junto ao Febrasgo e Bayer 55% das mulheres no Brasil declararam que não gostam de menstruar – seja por razões biológicas, como dores e desconforto, como também pelo constrangimento social que o ciclo (que é natural nos corpos com ovários e útero) causam na sociedade.
Todos os meses, o corpo se prepara para a gravidez, e quando ela não ocorre, o endométrio (membrana interna do útero) se desprende. A menstruação é justamente a descamação das paredes internas do útero quando não há fecundação. Tudo é um processo natural, mas não é de hoje que grandes tabus e coisas negativas são relacionadas com este ciclo.
Na idade média, o termo “tampão monstruoso” era usado por homens que presenciaram tecidos de linho usados por mulheres caírem no seu dia a dia. Isso se dava pela ideia de impureza e “maldição” que mulheres eram estigmatizadas durante seu período menstrual. Em algumas culturas na Índia, por exemplo, as mulheres são consideradas “intocáveis” neste período e são obrigadas a ficar distantes de todo mundo, para não “amaldiçoá-los com sua impureza”.
Já no Brasil, durante o século 18, o sangue menstrual era considerado o principal ingrediente para “enlouquecer pessoas” e até mesmo “matar bebês”. E em meados dos anos 1950, o mesmo também era visto como infértil e totalmente periculoso para colheitas. Com isso, mulheres eram obrigadas a se manterem distantes, fora de seus afazeres por tabus sem nenhum embasamento científico.
FONTES: “Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na história do Brasil” (Ed. Planeta), de Mary del Priore “O guia dos curiosos – Sexo” (Panda Books), de Marcelo Duarte e Jairo Bouer – Veja mais em 16 Curiosidades e tabus sobre a menstruação UOL
Com essa relação distorcida e preconceituosa junto a questões biológicas de dores e desconfortos que rodeiam a menstruação, é comum que mulheres cis, homens trans e pessoas não binárias que menstruam associem seu período a um ciclo totalmente negativo.
“Meu período menstrual é um verdadeiro inferno! Ele me afeta muito! Tanto psicologicamente, quanto fisicamente”, relata Marcela Abílio, 23, produtora audiovisual da região do Capão Redondo, zona Sul de São Paulo. “Eu me considero uma mina correria, por isso tenho que viver com os desconfortos que a menstruação me causa. Ainda assim, os primeiros dias são terríveis! E isso acaba afetando sim na minha produtividade”, ela afirma.
Marcela vive numa rotina de entregas constantes, às vezes sem tempo pra pensar nas dores do período menstrual. “Além disso, faço uso de ansiolíticos, então durante meu ciclo, fico 10 vezes mais sensível. Em conversas com a minha psicóloga, chegamos a um combinado de que não posso marcar nada nesse período. Mas o trabalho não para, né?!”. É durante sua menstruação que Marcela se joga em doces e tenta lidar com calma com os comentários pejorativos. “Tudo que eu fale ou faça já começam a dizer que é TPM, e isso é um saco!”, comenta.
As dores
A relação com a dor durante o período menstrual é o que mais incomoda mais de 50% das mulheres cis, segundo a pesquisa do Data Folha, divulgada pela Febrasgo. As cólicas menstruais são os verdadeiros monstros durante esse ciclo, fazendo com que pessoas que menstruam interrompam suas rotinas pelo total desconforto e sofrimento causados. A dor abdominal durante o ciclo menstrual faz parte desse processo natural, porém precisa ser sinalizada e tratada com cuidado.
“Para além das dores, que é um fator biológico, existem fatores psicoemocionais. A nossa sociedade vai dizendo que menstruar é horrível, é doloroso, é ‘chico’ que vem de chiqueiro, então você tem um chiqueiro dentro do seu corpo, somado à questão da dignidade menstrual que a gente usa esses absorventes industrializados que muitas vezes potencializam ou colocam um cheiro que não é o cheiro da menstruação. Então, todos esses fatores contribuem também para que a gente entenda a menstruação como sinônimo de coisa horrível e de dor. E aí quando sentimos uma dor de cólica, por exemplo, essa dor é potencializada”
Elânia Francisca, psicóloga e educadora em sexualidade do Espaço Puberê
E também é importante questionar até que ponto essas dores são naturais, pois cólicas constantes e muito fortes podem indicar outras questões de saúde mais graves, como a endometriose.
“Eu sentia cólicas muito fortes até antes de menstruar. Tive minha primeira menstruação aos 12 anos, e desde então questionava sobre cólicas e dores excessivas”, relata Paula Lopes Menezes, bióloga de 35 anos que mora no Jardim dos Manacás, região do Grajaú, Extremo Sul de São Paulo.
Paula sempre teve dores excessivas durante o período menstrual, mas toda vez que levava isso aos médicos eles não consideravam como algo grave, indicando o uso de anticoncepcionais para a dor. “Eu cheguei a me consultar pedindo algum tratamento pra parar de menstruar e lembro que o médico disse que eu não deveria fazer isso porque era muito novinha. Fiquei sem entender, já que era o meu corpo e eu quem sentia tanta dor”.
A negligência médica relatada por Paula pode ser justificada por um pensamento “médico centrado”, que Elânia comenta:
“Isso tem a ver com o machismo, porque coloca as pessoas que têm útero como pessoas que não têm poder de escolha e saber sobre si mesmas. Mas também tem uma coisa a ver com o saber médico. A gente vive numa sociedade médico centrada, que ela centra todo o saber sobre saúde no médico. E aí nesse sentido, se você diz ‘eu quero parar de menstruar’ quando falamos da educação menstrual ela serve para nos nos ensinar sobre seu corpo pra tomar a melhor decisão pra você. E quando a mulher escolhe não menstruar o que cabe ao médico é explicar pra ela os prós contras disso. Mas como a gente vive numa sociedade patriarcal, machista, racista, cis hétero normativa e médico centrada, às vezes o nosso desejo, e o nosso saber é diluído nessas opressões.”
Elânia Francisca
Paula descobriu que tinha endometriose aos 33 anos, um pouco antes da pandemia. “A partir daí comecei um tratamento para a cirurgia, mas é um procedimento bastante invasivo e com muitos riscos”, diz. Ela lembra de quando descobriu o uso de anti-inflamatórios para a dor e o quanto isso foi um alívio. “Foi libertador, porque não tinha nenhum remédio que funcionava!”.
Hoje em tratamento, Paula comenta do quanto espera por essa cirurgia, pensando que são quase 25 anos de dores mensais constantes. “Cheguei a perder empregos por não conseguir trabalhar com tanta dor! Isso gera um trauma, porque você sabe que vai passar por isso todo mês”, completa.
Quem menstrua e quem deixou de menstruar
Por anos, mulheres cis vivem em torno de preconceitos e estigmas na menstruação. Mas é importante enfatizar que nem todas as mulheres menstruam e nem todas as pessoas que menstruam são mulheres. Quando levantamos experiências de homens trans e pessoas não binárias, o preconceito e estereótipos se multiplicam.
“Pensando numa pessoa trans periférica que menstrua, ela vai enfrentar no sistema de saúde uma questão de transfobia. Embora o SUS seja muito importante, nos fortaleça e é uma referência mundial, ele é executado por pessoas, e muitas vezes essas pessoas têm um olhar transfóbico ainda sob esses corpos masculino transgênero”, observa Elânia.
“Eu nunca gostei de médico! Faço de tudo pra não ir”, comenta Ícaro Theodoro Silva, homem trans de 22 anos, subchefe de cozinha. Hoje, ele mora no Capão Redondo, zona Sul paulistana. “Fui ensinado desde cedo que não tem por que ir e sempre achei muito desconfortável tratar de coisas íntimas com estranhos”, continua. Ícaro fala das diversas vezes que sofreu com comentários transfóbicos vindo de profissionais da medicina. “Eles não estão devidamente preparados pra nos atender, por isso prefiro não ir”.
Ícaro aprendeu a lidar com a menstruação na marra. E mesmo que hoje acredite ter uma relação “ok” com as necessidades naturais de seu corpo, não significa que goste. “Eu pensei, e até tentei parar de menstruar, mas quando começamos os tratamentos com hormônios, se a menstruação não para, já sabemos que vai ser assim até ficar mais velho”, comenta. “Isso faz com que eu ande sempre preparado. Mas cuecas não foram feitas para absorventes, e é extremamente desconfortável usar banheiros públicos para isso!”
Esses são alguns dos desconfortos que homens trans que menstruam vivenciam diariamente durante seu ciclo, provocando alguns casos a disforia de gêneros, quando uma pessoa sente angústia devido à incompatibilidade entre a anatomia e a identidade de gênero.
Dito tudo isso, é comum que mulheres cis, homens trans e pessoas não binárias que menstruam anseiem pela menopausa. Ilderlânia Felipe, uma dona de casa de São Mateus, zona Leste de São Paulo, está conformada por estar “menopausando” nos seus 47 anos. “Achei muito bom! Pois desde quando menstruei pela primeira vez, aos 16, sempre senti muita dor!”, diz.
Ilderlânia teve 2 filhos e diz que, até ter o primeiro, sentia dores descomunais. “Todo o primeiro dia da menstruação, eu ia no consultório de uma dentista, amiga da minha irmã, pra pegar um atestado. O pessoal do trabalho já até sabia que eu não iria nesses dias!”, lembra.
Hoje, a sua rotina de dona de casa é até mais produtiva. Mesmo assim, ela não condena seu ciclo menstrual. “Eu sei que, por uma questão de saúde, é muito bom que a mulher menstrue, mesmo meu ciclo tendo sido difícil e um pouco traumatizante”. Ilderlânia lembra de quando teve que parar de brincar com os meninos na rua, por eles sempre zombarem dela por “sangrar”. “Eles ficavam dizendo que eu estava de ‘monstro’, ou de ‘chico’, e isso era insuportável. Mas a mulher aprende a lidar com esses comentários, porque eles nunca param”.
Respeito aos ciclos
Pensando nos tabus que permeiam a menstruação somados às dores biológicas, é importante reparar e cuidar da saúde emocional, que também está ligada ao ciclo menstrual.
“Eu, enquanto psicóloga, preciso entender como é que às vezes o sofrimento emocional apresentado na psicoterapia está relacionado a alguma fase do ciclo. Porque o modo como eu vivencio o meu período menstrual também está relacionado à minha emoção”, comenta Elânia.
Ela explica que somos ensinados desde muito jovens a odiar os nossos ciclos, e como isso acaba interferindo no modo como vivemos. “Falando não só do ciclo menstrual, mas do ciclo da vida mesmo. Odiamos a infância por sermos ‘crianções‘, a adolescência se torna ‘aborrecência’, a fase adulta é a época de pagar contas e por aí vai… Com isso, nossa relação com a menstruação se torna algo pesaroso. O ‘infelizmente’ é contínuo e aprendemos a odiar nossa corporeidade”.
Esse ódio pessoal, alimentado por estigmas, constrangimentos e tabus, torna o ciclo menstrual traumatizante, como apresentado pelas pessoas entrevistadas. Contudo, é possível ter uma relação saudável e não penosa.
“Não tenho nojo do meu sangue. Como ter nojo de um sangue que está saindo do meu próprio corpo? Esse deve ser o sangue mais limpo que temos. Pode gerar uma vida se você for utilizá-lo”, diz Ícaro.
Elânia, junto ao Vulvárias, traz essas reflexões no projeto “Ser de Lua”, contemplado pelo Programa VAI 1, que começa a ser executado em 2022. O projeto visa a dignidade menstrual para todos os corpos que menstruam e também para além da menstruação.
“A dignidade menstrual é um caminho longo. Ela está na menarca, a primeira menstruação, no ciclo, e na plenopausa (como pensamos e chamamos a menopausa). Essa discussão está para além de apenas distribuição de absorventes, mas para que pessoas que menstruam possam viver essa plenopausa com saúde e leveza”.
O uso do sistema público de saúde também é defendido por Elânia. “Algumas pessoas defendem que, se você não estiver sentindo dor, não precisa ir ao ginecologista. Eu particularmente defendo o uso do SUS, e digo que tem que ir sim! Tem que ir enquanto movimento de resistência, de que o SUS é nosso e temos que usar. E também como movimento de que não dá pra a gente acessar os serviços de saúde só pela via do adoecimento. Temos que ir ao ginecologista porque eu tenho uma cultura de autocuidado em mim.”
Para irmos além do ódio que nos é empregado!
*Letícia Padilha faz parte do “Repórter da Quebrada – Uma morada jornalística de experimentações”, programa de residência em jornalismo da quebrada realizado pela Periferia em Movimento por meio da política pública Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo
Letícia Padilha, Gisele Brito, Rafael Cristiano