Coleta de recicláveis aumenta na pandemia, mas não reflete em faturamento de cooperativa

Coleta de recicláveis aumenta na pandemia, mas não reflete em faturamento de cooperativa

Em 2020, coleta seletiva aumentou 17,4% em SP. Mas cooperativas como a Cooperpac reclamam de modelo de remuneração adotado, que é baseado no volume coletado e não no serviço realizado

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Tempo de leitura: 13 minutos

Por Vini Linhares*

Fotos por Vitori Jumapili. Artes: Rafael Cristiano. Orientação de reportagem: Gisele Brito. Edição: Thiago Borges

Papel, plástico, vidro, metal. Já tá no imaginário popular cada tipo de resíduo que pode ser reciclado. Mas Ivania Rocha Silva, de 56 anos, sabe que vai além disso. Tem plástico mais duro e mais molinho, de cores diversas; ou aquele papel de jornal, que é diferente do papelão. E que tem papel que nem dá pra ser reaproveitado, como o guardanapo ou higiênico. 

Ela entende disso porque há quase 10 anos faz parte da Cooperpac, que atua no Extremo Sul de São Paulo. São 6 horas por dia, 5 dias por semana, separando materiais na esteira que depois viram renda para 28 pessoas cooperadas. “Vale a pena trabalhar. Eu trabalho com um povo que gosto e a gente vê que o trabalho rende e faz diferença no meio ambiente”, conta Ivania.  

O esforço, inclusive, precisou ser maior no último ano.

Em 2020, o primeiro da pandemia, a coleta seletiva atingiu o maior patamar já registrado: houve aumento de 17,4% na cidade de São Paulo em relação ao ano anterior, o que a Prefeitura atribui a uma maior adesão da população, que passou mais tempo em casa e gerou mais embalagens. 

Mesmo nos períodos considerados mais críticos da pandemia, a administração municipal manteve a coleta de lixo comum e reciclável, além do funcionamento de 115 ecopontos da cidade e as 2 centrais mecanizadas de triagem (localizadas no Bom Retiro e em Jurubatuba). Esses serviços fazem a maior parte do trabalho.

Já as 25 cooperativas habilitadas no programa socioambiental de coleta seletiva da Prefeitura tiveram suas atividades suspensas temporariamente entre março e novembro do ano passado. É o caso da Cooperpac, que permaneceu o período fechada, retomou e ainda hoje enfrenta dificuldades financeiras. Afinal, apesar do aumento dos materiais coletados, isso não se refletiu no faturamento da organização.

(Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Onde tudo começou

Uma cidade do tamanho de São Paulo produz muito resíduo. Em um único dia, são 12 mil toneladas, entre lixo orgânico e reciclável. E a gestão disso é feita principalmente por 2 grandes empresas – a Ecourbis e a LOGA. Na ponta dessa cadeia, pessoas autônomas coletam recicláveis nas ruas, revendem e geram alguma renda. Muitas se organizam em cooperativas para melhorar as condições de trabalho e de negociação de seus produtos.

Criada por trabalhadoras autônomas em 2007 no Extremo Sul de São Paulo, a Cooperpac iniciou um processo de conscientização e coleta seletiva na quebrada muito antes da região entrar na rota do poder público. O trabalho começou com a vizinhança e foi crescendo. 

“Quem começou a coleta seletiva ali no Grajaú foi a Cooperpac, e isso eu tenho certeza, porque na época a gente tinha o caminhão e não existia a coleta seletiva que hoje tem nas periferias, né?”, aponta Fernando Pereira Santos, 43 anos, atualmente um dos responsáveis pela cooperativa. Há 8 anos, antes de ingressar na organização, ele trabalhava com lixo comum em Diadema (SP).

Fernando Pereira (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

“É um sistema totalmente diferente do que eu fazia, porque onde eu trabalhava o movimento sempre foi enterrar, aterrar. Não tinha conhecimento de reciclagem (…) Eu achei interessante como esse trabalho ajuda o meio ambiente, é uma visão totalmente diferente do que eu vi antes”, continua. 

Em 2010, o grupo firmou um convênio com a Prefeitura de São Paulo, o que garantiu o aluguel de um galpão de 1.500 metros quadrados no Jardim Lucélia (Grajaú) para receber e separar recicláveis que chegam pelos caminhões de coleta da Ecourbis. A cooperativa tem capacidade de processar 30 toneladas por mês, em média. 

Os materiais são acumulados aos poucos e, com as cargas fechadas, as vendas são feitas no final do mês. Depois de tirar as despesas de manutenção do espaço e o pagamento de taxas como INSS da equipe, uma assembleia é feita para prestar contas e ratear o valor igualitariamente entre todas, todos e todes. A renda média de cada pessoa que trabalha ali é de menos de um salário mínimo.

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No final de 2019, a cooperativa teve que deixar o espaço às pressas por um problema entre o proprietário do imóvel e a gestão municipal. A mudança foi para um espaço menor, no Jardim Satélite (próximo ao autódromo de Interlagos), distante a 10 quilômetros do endereço anterior – que foi ocupado por 9 anos e era próximo da casa da maioria das pessoas cooperadas.

“Eu moro no Grajaú, no Jardim Noronha, e ficou mais difícil com a mudança pra cá, porque a gente trabalhava pertinho de casa, ia a pé, era uns 15 minutos andando. Aí, mudou pra cá, e a gente agora tem que pegar 2 ou 3 ônibus… Mas a gente ama o que faz e a gente continua”, conta Ivania.

Disputa com gigantes

Se locomover até a nova sede mexeu com a renda e a rotina de quem trabalha na cooperativa. E com a chegada do coronavírus, em março de 2020, a insegurança aumentou por causa da paralisação das atividades. O impacto foi amenizado porque a Prefeitura investiu R$ 5,7 milhões em um auxílio mensal de R$ 1.200 para apoiar as famílias de quem trabalhava nas 25  cooperativas conveniadas durante 7 meses.

Em novembro do ano passado, as catadoras e os catadores voltaram a trabalhar presencialmente nos galpões, com cuidados redobrados nos equipamentos de proteção individual (EPIs). “A Prefeitura acabou ajudando com o salário mínimo, o que não paga os custos da cooperativa”, aponta Fernando. “A cooperativa voltou com muita dívida porque ficou um bom tempo parada, mexeu muito e ainda mexe”, diz ele.

(Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Mesmo com um volume menor do que as centrais de triagem mecanizadas recebem, a paralisação das pequenas cooperativas teve efeito na cadeia produtiva: isso aumentou o valor de venda de materiais como papelão, alumínio, ferros e plásticos, que são comprados e reutilizados pelas grandes indústrias.

Isso também se refletiu nos ganhos de quem trabalha na organização. “A gente tirava uma média de R$ 800 a R$ 900 por mês e a gente começou a tirar R$ 1.200, R$ 1.300”, explica Valquíria. Ela exemplifica: o valor do ferro passou de R$ 0,30 para R$ 1,30 o quilo, enquanto o da garrafa PET subiu de R$ 2 para R$ 4.

Porém, com a normalização dos serviços, os preços voltaram a baixar: o papelão já caiu de R$ 1,70 para R$ 1,40, com tendência de baixa. Com isso, para manter a renda média, quem trabalha na esteira vai ter que reciclar muito mais do que hoje – em junho, o montante chegou a 37 toneladas. 

É um problema estrutural. 

A treta das pequenas cooperativas é para ter uma remuneração pela prestação do serviço em si e não só pela venda dos materiais que passam na triagem – afinal, cerca de um terço do que é descarregado pelos caminhões no galpão não pode ser reaproveitado, portanto é descartado.

“Tem as concessionárias que prestam serviço para a Prefeitura e ganham milhões. E tem os catadores que fazem o mesmo serviço e não ganham pela prestação. E isso faz a gente querer saber quais são os nossos direitos?  O que  a gente pode fazer para melhorar?”, questiona Valquíria Cândido, que participa do Movimento Nacional dos Catadores, um lugar de referência e fortalecimento na organização das lutas da categoria.

Do ponto de vista do trabalho, as catadoras e os catadores movimentam a cadeia produtiva de recicláveis, mas só ficam com uma pequena porcentagem. “Eles não tiveram essa visão empresarial dos catadores de rua lá atrás, de que o lixo reciclável valia dinheiro. Mas agora eles  visam só o lucro, visa o resíduo e esquece o trabalhador”, aponta Fernando. 

Valquíria Cândido (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

“Se as cooperativas forem remuneradas pelo serviço e tiverem os mesmos benefícios,  seremos equiparadas às concessionárias. Hoje, as cooperativas têm contrato anual  com a Prefeitura, então se der algum problema em um documento a cooperativa corre o risco de ser fechada. As concessionárias têm contrato de 20 anos. Por que a diferença? Por que não capacitar as cooperativas?”, indaga Valquíria Cândido, que defende a medida para ampliar o impacto positivo no meio ambiente e gerar mais trabalho e renda. Hoje, quem trabalha na Cooperpac também recebe uma cesta básica graças a empresas parceiras, mas ainda é pouco.

Trabalho de formiguinha

Em tempos de escassez da água, de recursos naturais e do aquecimento global, é preciso falar sobre educação ambiental – e as cooperativas são uma alternativa para o desenvolvimento sustentável da cidade. 

Fernando defende que a população entregue seus recicláveis diretamente às cooperativas. “Peço a todo mundo que possa entregar o material para cooperativas, não para as empresas que passam na rua, que são esses caminhões verdes da coleta seletiva. Elas estão ganhando e muito, e tanto faz se você for entregar para elas ou não, pois o delas já está garantido pois têm o contrato fechado”, reforça ele. “Se entregar o material para um catador de rua ou uma cooperativa, você vai estar fortalecendo mais uma família”.  

A Cooperpac tem caminhões dirigidos por 2 coletores que recolhem materiais em residências fidelizadas e em pontos de descarte, como no Circo Escola Grajaú. Os trabalhadores circulam pelo Jardim Icaraí (às terças-feiras), Parque Residencial Cocaia e Jardim Eliana (quartas), Parque Cocaia e Grajaú (sextas). 

Mas o serviço não é só a separação de recicláveis. Trabalhando com as pessoas e com suas histórias de vida, a cooperação está transformando o mundo através da coleta seletiva. “Uma cooperativa que não se preocupa com as pessoas passa por dificuldades”, ressalta Valquíria. Lá dentro, tem mulheres, pessoas idosas, LGTBQIA+ e egressas do sistema prisional, que se organizam para não ter diferenciação no trabalho.

“Aqui na cooperativa, é uma ajudando a outra. A gente se dá muito bem, porque a gente se ajuda, faz todo mundo junto e uma cuida da outra, aprende, ensina”, completa Ivania. “E assim, o grupo se ajuda, se une para trabalhar melhor e se fortalece, porque uma pessoa só é mais difícil, então tem que ter união”.

(Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

*Vini Linhares é participante do “Repórter da Quebrada – Uma morada jornalística de experimentações”, programa de residência em jornalismo da quebrada realizado pela Periferia em Movimento por meio da política pública Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo

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