Reportagem de Eleni Santos. Fotos por Daniel Silvestre*
Quando recorda da infância, a maioria dos momentos de brincadeiras de Elzelene dos Santos Munhoz, de 25 anos, tem algo em comum: o córrego, que ficava perto de sua casa, no Parque Sônia, periferia da Zona Sul de São Paulo. “Não tinha parque, não tinha pracinha”, diz. Hoje moradora do Jardim Aurélio, ela é mãe e busca constantemente alternativas para as brincadeiras do filho de pouco mais de 1 ano de idade.
Elzelene sabe, assim como mostra o documento “Criança e o Espaço: a cidade e o meio ambiente”, da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), que a degradação ambiental na cidade a torna um espaço que não acolhe a demanda para um desenvolvimento infantil saudável.
O caso dela se multiplica pelas periferias da maior metrópole do País. De acordo com o Mapa da Desigualdade na Primeira Infância 2020, 27,66% dos domicílios do Capão Redondo estão em favelas, onde há precariedade ou ausência de serviço de saneamento básico (fornecimento de água e tratamento de esgoto), despejo de resíduos e entulhos em ruas e córregos, e moradias em áreas de riscos. São situações comuns e presentes também em bairros do Jardim Rosana, Parque Sônia, Jardim Aurélio e Cohab Adventista.
Acesso
No Brasil, de acordo com Instituto Trata Brasil, em 2018 foram registradas 115.151 internações de crianças até 14 anos relacionadas à falta de água tratada e o contato com esgoto a céu aberto, resultando, neste mesmo ano, em 91 óbitos de crianças de 0 a 4 anos.
Mayara Silva, advogada do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, relata que, em relação à promoção e proteção dos direitos da infância, houve importantes avanços no campo legislativo. Porém, “a prática ainda tem sido bastante desafiadora, especialmente para as crianças mais pobres, negras e moradoras da periferia que são também as mais atingidas pela degradação ambiental”, diz ela.
No estudo Poluição atmosférica e saúde infantil: prescrevendo ar limpo, publicado em 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mostra que 1 em cada 4 mortes de crianças de até 5 anos de idade está relacionada direta ou indiretamente a riscos ambientais, e que 93% de todas as crianças do mundo vivem em ambientes com nível de poluição do ar maior do que o recomendado pela OMS.
Os efeitos da contaminação atmosférica na saúde infantil pode refletir, por exemplo, em complicações do parto, na mortalidade infantil, no desenvolvimento neural, em infecções respiratórias agudas das vias baixas, asma e no câncer infantil.
Pandemia e meio ambiente
A pandemia da covid-19, o novo coronavírus, decretada oficialmente na cidade em 16 de março, é um exemplo atual tanto do impacto da degradação ambiental quanto do racismo ambiental.
A covid-19 é considerada uma doença zoonótica, causada pela transmissão do vírus de animais para humanos. Esse tipo de doença tem sido responsável por 60% das doenças infecciosas humanas e 75% das doenças infecciosas emergentes, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Uns dos principais fatores para o surgimento dessas doenças são a mudança climática, o desmatamento e outras mudanças no uso do solo, a intensa produção agrícola e pecuária, o comércio ilegal ou irregular de animais silvestres.
E as consequências do surgimento do novo coronavírus e seus impactos também recaem na população pobre, preta e periférica. Dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) apontam a distribuição de óbitos por distrito, nos quais os maiores índices estão em áreas periféricas, como, por exemplo, na Brasilândia, Sapopemba, Grajaú, Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela.
Por mais que as crianças não estejam dentro do grupo de risco, elas não estão fora dos impactos acentuados e gerados pela pandemia.
O estudo Repercussões da Pandemia de Covid-19 no Desenvolvimento Infantil, elaborado pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), cita alguns impactos que podem ser vistos desde o aumento de números de crianças em situação de pobreza, a exposição à violência, a negligência e a falta de estímulos positivos necessários para o desenvolvimento, a exposição a telas, a fome ou má alimentação, ao estresse tóxico, até dificuldades funcionais e comportamentais.
A qualidade do cuidado familiar é um fator essencial para o crescimento e desenvolvimento da criança, e essa qualidade depende de boas condições psicossociais, sanitárias e econômicas, aponta o estudo.
Debate
Amanda Costa, entusiasta da Agenda 2030 – plano de ação criado por 193 países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015, para que todos os países pudessem se desenvolver de forma sustentável – também tem levado esse assunto para as periferias por meio do canal digital @PeriferiaSustentavel.
Para ela, o desafio se dá na necessidade de traduzir o debate ambiental por meio de um um discurso simples, mas sem desvincular a profundidade das questões. Além disso, ela considera fundamental o engajamento da população para que governo e organizações possam, em conjunto, procurar as soluções utilizando o conhecimento técnico e o saber ancestral, o saber da comunidade.
“A Agenda 2030 busca frear a degradação ambiental a partir do momento em que ela entrega o tripé da sustentabilidade, que é a parte social, econômica e ambiental, partindo de uma visão integrada, indivisível e interligada”, explica.
Uma outra maneira de conhecer e acompanhar as questões socioambientais nas periferias pode ser por meio do Programa Ambiente Verdes e Saudáveis (PAVS), coordenado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM), presente em 30 Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Zona Sul de São Paulo, nos distritos do Jardim Ângela e Capão Redondo, com 7 eixos temáticos de atuação como: água, ar e solo; cultura e comunicação; gerenciamento de resíduos sólidos; revitalização de espaços públicos; biodiversidade e arborização; horta e alimentação saudável; e Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P).
De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, até o momento, ao longo de 4 anos já foram instalados mais de 30 Pontos de Entrega Voluntária (PEV) na região, possibilitando a coleta de 654 kg de filmes radiográficos, 2.818 toneladas de pilhas e baterias, 7.000 kg de lixo eletrônico e cerca de 20 toneladas de óleo de cozinha residual, preservando, aproximadamente, mais de 500 milhões de litros de água, conforme parâmetros da Sabesp.
Já os Agentes de Promoção Ambiental dedicam-se a sensibilizar a comunidade do território por meio de campanhas de coleta de resíduos, ações em grupos das UBS e visitas domiciliares socioambientais.
A preservação do meio ambiente é essencial para a efetivação dos direitos fundamentais da infância. Esta é uma questão urgente para que haja melhores condições de vida para milhares de crianças das periferias, negras ou em situação de vulnerabilidade.
*Esta matéria foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território
Redação PEM