100 dias de isolamento: Episódios da vida comum

100 dias de isolamento: Episódios da vida comum

Por Gil Marçal

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Por Gil Marçal, Gestor e Produtor de Projetos Culturais, que vive tratando a sua ansiedade nos últimos 5 anos

Alcançamos a marca de mais de 50 mil mortes oficiais por covid-19 no Brasil, mas sabemos que os números de vítimas fatais são muito maiores. Esses números são resultados de um Governo trabalhando na contramão das recomendações indicadas pela Organização Mundial da Saúde e ao serviço da nossa pequena Elite de ricos que pauta como o país deve funcionar tendo em vista seus lucros e não o bem estar do povo.

Minha irmã liga e me diz que meu padrasto, de 72 anos, hipertenso e diabético, falou que preferia ir embora do que ter que ficar preso em casa. Crise familiar, briga, neta chorando pedindo para o avô não ir embora, irmã confusa se fez o certo em “proibir” saídas até a praça ali perto. Meu padrasto dizia com a convicção de um Presidente da República de que “era apenas uma gripezinha”. Minha irmã respira, combinamos que ela precisa pedir desculpas para aliviar a tensão. Meu padrasto foi convencido da necessidade do Isolamento Social, EleNão!

No Brasil o discurso neoliberal de enxugamento da máquina pública vinha em um tom crescente provocando a redução dos direitos sociais e trabalhistas, cortes de investimentos na ciência, tecnologia e na pesquisa, além de ameaças de desmonte do SUS. O fenômeno da pandemia colocou todo este discurso, promovido por nossas Elites e muitas vezes repetido pelos mais pobres, em cheque. No momento em que deveríamos ter mais proteção social, temos menos. Todos os dados mostram que quem mais morreu foi gente pobre e preta e agora a Covid-19 assola nossas comunidades indígenas.

Fico aliviado por minha mãe, idosa, com apenas 37% do pulmão funcionando, ter convênio médico particular, apesar da sua aposentadoria servir apenas para cobrir este custo. Reflito se este alívio é um sentimento egoísta frente ao meu padrasto que não tem convênio. Como ele 70% da população do país usa o Sistema Único de Saúde.

Nas periferias, favelas e cortiços das cidades é muito difícil fazer isolamento social. Em São Paulo, 27% da população dormem com três ou mais pessoas no mesmo dormitório. É óbvio que somos os que mais morrem, afinal pobre divide quarto, transporte público, hospital e só não morremos mais porque compartilhamos algo fundamental na pobreza, a solidariedade.

Se tem uma coisa que pobre faz bem, além de cuidar da vida dos outros, é se ajudar. São inúmeros os movimentos de solidariedade de arrecadação e distribuição de cestas básicas nas periferias promovidos por ONGs, igrejas e grupos culturais.

Além de ter sido beneficiado com uma cesta básica, ao levar duas pequenas cestas para minha prima que passa por dificuldades financeiras, ela me disse que daria uma das cestas para uma outra mulher, com 3 crianças, que também estava passando dificuldades. Quanto mais pobres, mais solidários somos.

Álcool gel é uma novidade total na vida dos pobres, não me lembro de antes desta pandemia ter comprado algum frasco na vida e quando fui comprar não tinha mais. Fomos salvos pelo velho e bom sabão neutro. Os cuidados para não pegar Covid-19 trouxeram novos elementos para a nossa vida social, como o distanciamento físico das pessoas, um simples aperto de mão virou algo arriscado e um abraço é quase um ato pornográfico nos dias atuais.

Enquanto a maior parte da sociedade encaminhava-se para, dentro dos seus limites, fazer o tal do Isolamento, uma minoria entusiasmada com as falas do Presidente da República mantém seus atos e manifestações presenciais pedindo o fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e Intervenção Militar no país.

A camisa da Seleção Brasileira de futebol vem sendo usada como símbolo de ideias conservadoras e reacionárias. Ser justamente as torcidas organizadas, com as camisas de seus times, a fazer frente ao fascista neste momento foi uma reviravolta histórica muito interessante.

Explodem manifestações antirracistas nos Estados Unidos devido a morte de George Floyd e aqui manifestações são realizadas para, além de defender a democracia, protestar contra a morte de adolescentes e jovens pretos das “quebradas” mortos pela polícia. O racismo institucional está profundamente enraizado na cultura das forças de Segurança Pública do Brasil. Quando morre um João Pedro todos nós morremos um pouquinho também. A juventude, os principais atingidos com esse genocídio, é a marca desta ocupação nas ruas. O lema #VidasNegrasImportam é ecoado em toda a América.

Se antes da Pandemia a questão da Saúde Mental já era uma preocupação, agora é mais ainda. O Isolamento e a privação de circular, a preocupação com falta de grana e as contas para pagar, a impossibilidade de encontrar pessoas e socializar, ampliaram em muitos os quadros de Ansiedade, Depressão e até suicídio, sobretudo entre os jovens.

Um dos meus amigos tentou suicídio, quase morreu, foi até a porta do limbo, mas o passaporte foi recusado. A família social foi tão importante quanto a família genética no seu acolhimento e cuidado. Não sabemos o que vem pela frente, mas uma coisa é certa, a necessidade de seguir nos cuidando e cuidar das pessoas em nossa volta.

Apesar do alcoolismo ser responsável pela desgraça de muitas famílias, o bar é o consultório público do pobre. É ali que fazemos nossas análises, falamos coisas não ditas no estado comum e onde ocorre um forte processo de socialização.

A Ansiedade muitas vezes vem por uma preocupação com o futuro nos impedindo de viver no presente, enquanto a depressão se relaciona com o passado nostálgico, impedindo a possibilidade do novo. O cuidado com a Saúde Mental é tão importante quanto as medidas de higiene que estamos incorporando no nosso dia a dia. A gente precisa cuidar da limpeza da alma e da mente com a mesma regularidade que lavamos as mãos.

Atividades artísticas, caminhada, exercícios físicos de alongamento, meditar, lembrar do ritmo da respiração e conversar com pessoas queridas para desabafar as angústias são cuidados que podemos ter para fortalecer, além do corpo, a nossa mente, mas se necessário procure ajuda profissional.

É evidente que o passado e o futuro são importantes na nossa vida, mas “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”! Vai passar!

Fique em casa o máximo que puder e se precisar sair use máscara.

3 Comentários

  1. Alexandre Camaru disse:

    Depoimento contundente, retratando a vida real.

  2. Rodrigo disse:

    Muito bom

  3. Kelvin Oliveira disse:

    Gil maravilhoso! Referencia de profissional e ser humano da minha vida <3

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