Por Thiago Borges
Os números são suficientes para mensurar o tamanho da dor?
Pois o Brasil foi dormir na noite de quarta-feira (03/06) com mais um triste recorde, e pelo segundo dia seguido: naquelas 24 horas, o País registrou 1.349 óbitos por covid-19, equivalente a 27% de todas as mortes causadas pela pandemia no mundo, totalizando 32.548 vítimas fatais. Também registramos mais 28.663 novos casos de contaminação, chegando a 584.016.
O Ministério da Saúde segue sem um titular há 20 dias, enquanto o ocupante da Presidência da República menospreza a situação: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, disse ontem Jair Bolsonaro. E daí?
“Estamos vendo essa confluência de genocídios no País e no mundo se atualizarem com as tantas violências que já vivíamos”, aponta o historiador Danilo César, complementando que 3 direitos fundamentais se conectam nesse momento: o direito a uma morte digna; o direito ao luto; e o direito à memória. “Agora, há um genocídio viral”.
Isso conversa com violações históricas geradoras de massacres: das mortes de indígenas decorrentes de epidemias trazidas na invasão dos colonizadores europeus aos corpos negros jogados ao mar na “kalunga grande”, a travessia entre África e Brasil durante mais de 3 séculos de sequestro e escravização; da segregação racial do pós-abolição da escravidão a momentos mais recentes, como a ditadura militar e a redemocratização, que manteve práticas de prisão, tortura e morte.
E agora que somos o epicentro mundial da pandemia de coronavírus, é nas periferias que o massacre movido pelo Estado se perpetua, com a omissão de ações de combate, falta de testes a flexibilização das medidas de distanciamento social.
Para amenizar esse impacto, um grupo formado por pesquisadores, militantes e profissionais de diferentes áreas criou a Rede de Apoio às Famílias de Vítimas de Covid-19, que reúne um repertório de acolhimentos e cuidados para lidar com a situação.
Com a apoio de Danilo César, que é um dos coordenadores dessa Rede, a Periferia em Movimento lista a seguir alguns pontos com objetivo de preservar o direito a uma morte digna.
Quando o pior acontece
“Não é exagero dizer que estamos vivendo contexto de guerra, ou massacre em massa. É uma situação muito delicada do ponto de vista da saúde pública, e também em relação à pressão que profissionais de saúde e agentes funerários também estão vivendo, e precisamos ter atenção a isso. Ao mesmo tempo, o papel de todos nós é garantir e salvaguardar os direitos fundamentais das pessoas”, observa Danilo.
A Rede de Apoio recebe relatos de pessoas com algum familiar em estado grave, internado principalmente em hospitais de campanha, e da dificuldade em ter contato com as equipes de saúde já sobrecarregadas. Isso gera angústia e estresse – e não há uma orientação para despedida digna quando confirmado o óbito.
Em caso de violação desses direitos, você pode procurar as ouvidorias das autarquias hospitalares, o próprio Ministério da Saúde (136), a Defensoria Pública Federal ou de seu Estado. Organizações populares, como Centro de Direitos Humanos e Educação Popular – CDHEP Campo Limpo (na zona Sul de São Paulo – telefone 11 981472058) e o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – Cedeca Sapopemba (zona Leste – telefone 11 2702-2729 ) também recebem denúncias, assim como o IBCCRIM.
Seguindo orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), em uma publicação de 25 de março, o Ministério da Saúde estabelece diretrizes para manejo de corpos no contexto do coronavírus com orientações para profissionais de saúde e do serviço funerário. E em 31 de março, o Ministério da Saúde e o CNJ liberaram o sepultamento ou cremação sem declaração de óbito em caso de ausência de familiares ou conhecidos do falecido para fazer o registro civil.
Para os familiares, os principais pontos a que se deve ficar atento são:
- a declaração de óbito deve constar a confirmação por covid-19; quando o exame não foi feito ou não teve o resultado antes da morte, deve constar a suspeita pela morte assim como as possíveis co-morbidades
- um único familiar ou responsável deve fazer o reconhecimento do corpo, respeitando a distância mínima de 2 metros de distância; quando houver necessidade de aproximação, o familiar deve usar máscara, luvas e aventais de proteção
- no estado de São Paulo, as autópsias por morte natural estão suspensas e só devem ser feitas em casos de mortes violentas ou quando a vítima está sob custódia do poder público (como no caso de detentos no sistema carcerário, por exemplo)
- não se deve fazer embalsamento ou usar formol e o corpo deve ser embalado preferencialmente com um lençol e duas camadas de saco plástico impermeável, desinfetado e com etiqueta de identificação
- o caixão deve ser lacrado e não pode mais ser aberto até o sepultamento
- a OMS não recomenda a eliminação apressada dos corpos de vítimas, salientando que deve ser preservada “a dignidade dos mortos, sua cultura e religião, tradições e suas famílias”
- os velórios e funerais de pacientes confirmados ou suspeitos da covid–19 não são recomendados durante os períodos de isolamento social e quarentena (verificar em SP); se for necessário, deve ter o menor número de pessoas e quem tem risco aumentado não deve comparecer
“É parte importante do luto literalmente colocar uma pedra naquela fase e conseguir elaborar a pós-morte e o pós-trauma. Quando a gente não passa por isso, essa é uma ferida que fica”
Danilo César, da Rede de Apoio às Famílias de Vítimas de Covid-19
Elaborando o luto
A Rede de Apoio, a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC) e o Segura a Onda (que reúne iniciativas cidadãs frente ao coronavírus. Clique aqui para conhecer) traduziram e publicaram o “Guia para pessoas que perdem um ente querido em tempos de coronavírus”, criado por profissionais espanhóis especializados em luto e perda. Você pode acessar o guia clicando aqui.
O guia conversa diretamente com quem está em luto, aborda os sentimentos comuns nesse momento e também sugestões para rituais de despedida, como:
- tocar uma música, colocar um objeto sobre o caixão ou ler uma carta de quem não pode comparecer ao funeral por conta das medidas de distanciamento social (principalmente, idosos que conviviam com a vítima da doença)
- preparar uma carta, um poema, um áudio ou vídeo que possam ser compartilhados com outras pessoas próximas do falecido como uma forma de homenagem
- fazer desenhos, criar álbuns de fotos ou mini-documentários honrando o histórico de vida compartilhado
- organizar um encontro virtual de despedida via whatsapp, skype, zoom, hangouts, entre outras plataformas, que permita a troca dessas lembranças. Se for religioso, talvez possa contar com um sacerdote ou guia espiritual
O guia lembra, ainda, que é importante incluir as crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais nos rituais, explicando naturalmente, de acordo com a idade e condição, o que será feito e como eles poderão participar. Os especialistas abordam ainda uma série de cuidados na parte corporal, emocional-relacional, cognitivo-mental e espiritual.
Já se você está acompanhando alguém em luto, mesmo à distância, o mais importante é demonstrar apoio e empatia, sempre no ritmo de quem está vivenciando esse momento. Não diga “seja forte, anime-se”, mas sim “Eu realmente gostaria de poder dizer algo para aliviar sua dor, mas não consigo encontrar as palavras”.
A Periferia em Movimento já abordou o assunto em outras oportunidades. Em 6 de maio de 2020, falamos do assunto com Alexya Salvador, reverenda da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Assista:
E no vídeo abaixo, a psicóloga Ester Maria Horta aborda as 5 fases do luto e o que é possível fazer nessa situação.
“A grande maioria das pessoas acolhidas [pela Rede] está numa situação de trauma muito profundo. Estão atônitas, inertes, então demora um tempo para as famílias elaborarem a perda”, observa Danilo, da Rede de Apoio.
Quando essa situação não está resolvida, é importante buscar apoio profissional. A Periferia em Movimento listou espaços alternativos que oferecem suporte à distância. E aqui, você confere os contatos dos Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) da cidade de São Paulo.
Construindo a memória
“A memória é tudo. É muito importante para qualquer pessoa viva ou que passou por processo difícil, na sua comunidade, no seu bairro, lugar de trabalho”, lembra Danilo.
Uma das primeiras medidas da Rede de Apoio foi a criação de um Memorial virtual no Facebook, que reúne uma série de depoimentos sobre quem foi vitimado nessa pandemia. Outras iniciativas semelhantes, como o site Inumeráveis e o projeto Santinho.
“É algo fundamental, assim como a escrita de uma outra memória é fundamental para a escrita de um outro País. Um País que não lida com sua história está fadado a construir autoritarismos”, conclui Danilo.
Conteúdo produzido com apoio do Fundo de Apoio Emergencial COVID-19, do Fundo Brasil de Direitos Humanos
Redação PEM
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