Escambos periféricos: do Extremo Sul de São Paulo ao Grande Recife

Escambos periféricos: do Extremo Sul de São Paulo ao Grande Recife

Saberes da Natureza: Saímos do Grajaú rumo à capital pernambucana para investigar como o meio ambiente - e os ataques a sua preservação - influenciam na manutenção de culturas tradicionais nas periferias

Compartilhe!

Tempo de leitura: 14 minutos

O que o Extremo Sul de São Paulo tem a ver com  o Grande Recife? Quando tratamos do meio ambiente, cujo dia é lembrado mundialmente nesta terça (06/06), tem muita coisa em comum.
Em mais um escambo periférico, dessa vez com o tema “Saberes da Natureza”, o Periferia em Movimento pretende investigar como o meio ambiente – e os ataques a sua preservação – influenciam na manutenção de culturas tradicionais nas periferias. E estamos fazendo isso na região de Grajaú e Parelheiros (Extremo Sul de São Paulo), onde a gente atua, e em diferentes comunidades do Recife e Olinda, em Pernambuco, de onde inclusive muitas e muitos dos que vivem em nossas quebradas vieram.
O Extremo Sul de São Paulo é margeado por duas represas, a Billings e a Guarapiranga, que abastecem um terço da região metropolitana; e tem duas APAs (áreas de preservação ambiental), a Bororé-Colônia e a Capivari-Monos, onde estão nascentes de rios que desaguam nessas represas. É uma região importante para a manutenção da cidade de São Paulo e seu equilíbrio ambiental, porém abandonada pelo poder público. Com isso, temos uma população de quase 800 mil habitantes que ocupou irregularmente essa área nos últimos 40 anos, e com muitos direitos violados. Boa parte dessa população é migrante ou descende de quem migrou do Nordeste.
Por aqui, já entrevistamos duas pessoas para esse projeto. Uma delas é a rezadeira Dona Beth, católica fervorosa que veio de Pernambuco morar no Grajaú há algumas décadas. Por aqui, ela viu mudanças no território, mas continua colhendo folhas de guiné e arruda para benzer quem procura por ajuda. Outro entrevistado é o filósofo e escritor Olivio Jekupe, indígena guarani que vive na aldeia Krukutu, em Parelheiros, e que fala da importância da luta pela demarcação de terras indígenas para manter o ambiente preservado.

Próxima parada: Recife

Desembarcamos na capital pernambucana no final do feriado de Corpus Christi, 31 de junho.
Logo que saímos do aeroporto, no caminho para a Nova Morada, observamos como aquela cidade era plana e tinha rios e canais percorrendo os bairros. Muitas pontes atravessavam canais poluídos que antes do aumento das indústrias foi um rio limpo. É curioso de se pensar que o rio Capibaribe corta a cidade toda e passa por várias intervenções até chegar ao mar, quando chega.
Nossa hospedagem varias, pois em todos os lugares que conhecemos foi uma sensação incrível de acolhimento. Mas os locais onde dormimos foram duas casas em específico: a casa da Natália Corrêa, do coletivo Favela News, e a casa do Rodrigo, do coletivo Caranguejo Uçá.
O FavelaNews usa mídias digitais para oferecer meios de reconhecimento a moradores da periferia e para destacar o lado bom da favela: seus líderes, sua educação, seu trabalho, sua arte, sua energia para mover o mundo. Também busca meios de organizar algumas das comunidades do Canal para resistir à violência e buscar um mundo melhor para os moradores dos bairros, especialmente para as crianças.  
O Caranguejo Uçá  é uma associação comunitária que tem por finalidade promover a economia verde inclusiva no território da Ilha de Deus, bem como estimulá-la e disseminar práticas exitosas no município do Recife e no Estado de Pernambuco, alicerçada nos pilares da educação, cultura, comunicação, tecnologia da informação e meio ambiente.

Natália, do Favela News, e o Periferia em Movimento (Foto: Periferia em Movimento)


A primeira noite passamos na casa da Natália Corrêa, que fica em Nova Morada, um bairro onde a Prefeitura não quer reconhecer como tal. Por isso, acaba levando o nome do bairro ao lado. O bairro surgiu há 20 anos como área de loteamento acessível para quem não tinha muita grana. As casas foram construídas pelos próprios moradores, e tudo o que o bairro precisa os próprios moradores tomam a iniciativa e fazem.
Atualmente se tornou um bairro completo, pois se encontra de tudo: mercado, salão, lojas de roupas, e a comunicação fica na responsa do carro de som. Os moradores têm seus próprios negócios e quem fortalece o bairro faz a economia de lá girar. Os carros de ovos são marcantes, como bem conhecemos de SP. As empresas de internet não funcionam por lá, então o único morador que conseguiu, cabear para o resto do bairro, como uma espécie de internet comunitária. Também notamos que o bairro é fortemente evangélico, e também é um bairro pequeno, onde se pode fazer tudo de bike.
Na parte da tarde, conhecemos, na companhia de Ívano, as ocupações populares vizinhas ao bairro em que Natália mora. São terras da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que foram ocupadas para moradia nos últimos dois  anos. As áreas mais próximas da Nova Morada são habitações feitas de alvenaria, com mais aspecto de cidade. A principal diferença para o outro lado da rua (fora da ocupação) é que ninguém ali tem regulamentação da sua moradia. E adentrando mais na ocupação, em alguns quarteirões ela muda de aspecto. É o local chamado de sítio.
Nessa parte chamada de sítio, a maioria dos moradores são posseiros que de alguma forma compraram e/ou habitaram as terras de pessoas que cuidavam daquelas terras da universidade antigamente. Ali existem também prédios antigos, como por exemplo o Quartel General, hoje habitado por algumas famílias. Essa área de sítio é de mata, com construções espalhadas. Alguns dos moradores são reincidentes de outras ocupações que pegaram fogo na cidade.

Ali, conhecemos a entrevistada Sandra Zuleide da Conceição. Ela e seu marido tiraram a plantação de cana para plantar variados alimentos e mora ali há 10 anos, e revendem estes alimentos para o bairro ao lado. Ao lado da sua casa, existem planos de construção de um shopping. Ela já recebeu a oferta de ganhar apartamentos em troca da sua terra, mas o único local que trocaria por ali é o Agreste, de onde ela veio.
Foi muito interessante de ver a ligação de outro morador, que se chama Nino, com a natureza e como ele consegue remédio para tudo sem ir em nenhuma farmácia. E o quanto isso é desvalorizado pela sociedade também.

À margem, ao lado e ao redor

O rio Capibaribe que hoje parece um córrego com cheiro forte de esgoto, algum dia foi mais vivo. Ele percorre outros estados e chega ao Recife recebendo alta carga de resíduos de empresas e de esgoto doméstico. Nas épocas de chuvas fortes, ele enche e atinge as ruas, assim como a maioria dos canais. Tem inclusive algumas áreas do Recife conhecidas como a Veneza, como a Brasilia Teimosa, por ter épocas em que moradores andam de barco entre suas casas. Bom seria se a água não fosse poluída e a população tivesse acesso ao saneamento básico, para poder pescar dali mesmo. Porém, como vimos nos outros dias, os pescadores vão cada vez mais longe em busca de peixes.

Ponto de Cultura Daruê Malungo (foto: periferia em movimento)


 
 
 
Na beira do rio, a comunidade da Nova Morada tem um campinho de futebol. Sábado inclusive teve jogo organizado pelos moradores. Nesse dia, saímos de lá fomos para o bairro do Arruda entrevistar o Mestre Meia-Noite do espaço Daruê Malungo. No Daruê existe uma escola há mais de 30 anos que foca no ensino de vivências, o que faz mais sentido 

Mestre Meia-noite no Daruê Malungo (foto: Periferia em movimento)


para ele e para as pessoas que estudam lá. Após a entrevista, o Mestre nos mostrou um pouco do bairro onde se encontra o Daruê, que se chama Chão de Estrelas. Após esse rolê pelo bairro, fomos  almoçar no
restaurante da mãe do Okado Barreto (também atuante do Favela News), Dona Sônia, e também conhecemos um dos lugares de atuação do coletivo de comunicação.
 
 
Quando saímos do Arruda direto para Olinda, município colado ao Recife, notamos as mudanças que o caminho ia tendo. Passamos por uma Olinda bem parecida com bairros de classe média de SP e depois rumamos ao Centro, que era muito turístico, muito diferente, cheio de ladeiras, casas antigas coloridas e igrejas.
Atrás do Largo do Amparo, no alto da ladeira, vimos o palco da comemoração dos 20 anos do Coco de Umbigada. O Centro (ou Ponto) Cultural Coco de Umbigada foi construído aos poucos, com o apoio da comunidade e resistindo à polícia e ao Estado.
Esperamos 3 horas pela entrevista com Mãe Beth de Oxum, fundadora do espaço, e nesse tempo pudemos conhecer a organização, algo que acontece em família, entre queridos. Dali, víamos a paisagem que mistura fave

Comemoração de 20 anos do coco de umbigada (foto: periferia em movimento)


la, prédios, rios e mar. No alto, um céu azul que em instantes virou nuvens de chuva e depois abriu espaço para o por do sol.
Mãe Beth mostrou que essa conexão entre território, cultura e meio ambiente é milenar, é dos Orixás. Falou sobre Iemanjá, sobre a força das águas na nossa vida, sobre a união que acontece através da cultura. E também, que temos que nos apropriar das inovações, como no projeto de game deles, que une todas essas tecnologias a diáspora  africana no roteiro. 

Sede do Caranguejo Uçá na Ilha de Deus (Foto: Periferia em Movimento)


Após um dia maravilhoso na presença de Mãe Beth, fomos visitar a Ilha de Deus, que é uma ilha onde os pescadores antigamente ocupavam para poder ficar mais perto dos rios onde trabalhavam. Aos poucos ela foi crescendo, mas infelizmente nos rios ao redor há muita poluição, e isso está dificultando o trabalho dos pescadores, que precisam ir para outros locais trabalhar. Estar lá foi um grande aprendizado sobre ancestralidade, relação com a pesca e com as águas. Nos anos 1980, a ilha era um paraíso, mas depois da poluição, é cada vez mais difícil viver
da pesca por ali.
 
É nesta ilha que o Caranguejo Uçá tem sua sede fixam e que atualmente estão desenvolvendo uma linha do tempo que mostra a trajetória do território, que é incrivelmente vasta e sensacional.

O que vimos? E o que queremos mostrar?

Tanto em São Paulo quanto no Recife, a ausência do Estado em todos os territórios é evidente. Os moradores criam um equilíbrio com o meio ambiente em todos os espaços, mas o governo não amplia essa relação, suas únicas ações são no sentido de coibir essa relação.
Esse questionamento, sempre presente entre nós, ficou mais evidente durante a imersão do “Clima e Territórios”, um projeto da agência Purpose com participação de 10 coletivos de comunicação periféricos de seis cidades brasileiras com objetivo de discutir mudanças climáticas e periferias. Essa imersão rolou entre o final de abril e começo de maio em Parelheiros (São Paulo), e foi onde conhecemos o Favela News e o Caranguejo Uçá.
Como resultado, temos esse escambo periférico.  E até o final de julho, o Periferia em Movimento conta histórias de pessoas que vivem em harmonia com os recursos naturais e preservam o meio ambiente e as culturas tradicionais.
 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Apoie!
Pular para o conteúdo