Por Joseh Sillva, no Observatório Popular de Direitos
A periferia foi e é construída por luta. Não há um posto de saúde, praça, escola, transporte, asfalto que não tenha sido erigido com união e reivindicação do povo. Há pelo menos 60 anos os periféricos ocupam espaços públicos, seja para construir casas ou sanar qualquer necessidade que favoreça a sua sobrevivência. A resistência não é simplesmente uma bandeira, é uma forma de escapar das mazelas infligidas por governantes brancos, racista, elitista. Homens que usam o conceito de democracia para desrespeitar a diversidade cultural do povo e sustentar a concentração de renda – é o neocolonialismo da maneira mais crua.
O povo que vive nas bordas da cidade, e também no centro, como na favela do Moinho e em ocupações recentes, aprenderam a resistir, pois não havia outro caminho. E isto criou um exército silencioso de linhas de frente: Santo Dias, Aurélio Peres, Nilson Furtado, Carlão Gilberto, Neide Abati, Dona Lourdes, Abel Abati, Maria dos Reis, Pedro Reis, Linda Si, Maria Filipe, Vicente Espanhol e mais tantos que não aceitaram a exploração do patrão, a carestia da cesta básica, o açoite social da massa e foram para ação.
Alguns destes ativistas da periferia estiveram na quinta-feira, dia 24 de abril, para o diálogo em uma aula pública de história ao estilo do programa Retrovisor, no qual os personagens contam a própria narrativa de vida e versão dos fatos. A conversa tinha como estirpe os 50 anos da ditadura no contexto da periferia. Tudo aconteceu em uma casa erguida por alguns deles, a Casa do Bairro, que fica no Jardim Ibirapuera, zona sul desta cidade desigual.
Dona Lourdes, paraibana de Campina Grande, tinha uma visão genérica da ditadura. Ela relata que sabia que o país estava em uma situação tensa, mas não fazia ideia ao certo o que se passava. “Não tínhamos televisão, só algumas casas em fazendas que possuíam rádio. Ouvíamos os boatos que fulano havia morrido porque era comunista”. Assim, influenciados pelos meios de comunicação e também por algumas igrejas, todos viam o comunismo como algo perverso. “O Padre da minha cidade, Sr. José Borges, dizia: ‘o comunismo é assim: vocês têm aquela terrinha. Se o comunismo tomar conta, vai ter que dividir com todo mundo. O comunismo é aquilo que vai arrancar a sua unha, é aquilo que vai arrancar os seus olhos. Era um Padre que falava isso dentro da igreja”, lembra.
“Sou uma semianalfabeta educada pela luta”. Lourdes faz questão de pontuar que aprendeu a ler, ensinando crianças a “leitura” e ressalta com humildade exemplar a maior recompensa em seus 80 anos de vida. “Minha grande vitória foi passar o conhecimento que tive para outras jovens. Ai elas tomaram conhecimento da luta e buscaram seus direitos”. E com uma simplicidade à lá Mujica mostra sua alma: “Eu não sou grande coisa lá pra fora, mas para o meu bairro eu doei grande parte da minha vida”.
Para Carlos Gilberto, o Carlão, a ditadura permanece, mas com um recorte de classe. “É necessário discutir a tortura. Hoje a questão do genocídio da juventude é um fato real.” Para ele, a forma como está constituída a segurança pública revela quem são as vitimas da tirania contemporânea: “A nossa luta hoje é a favor da desmilitarização da polícia. Dá uma olhada como está a segurança pública aqui no bairro e veja se a ditadura não permanece”, reforça uma pauta discutia nacionalmente por diversos movimentos sociais.
Alguns militantes não mostravam que eram da luta contra o regime civil-militar. Foi o que revelou a esposa de Pedro Reis, Sra. Maria dos Reis. “Ele não me contava, talvez porque eu iria ficar com muito medo. Mas eu sabia que ele participava, jogava folheto nos quintais das pessoas. Mas eu jamais pensava que isso ia dar cadeia. No dia 22 de março de 1970, duas horas da madrugada, a policia chegou na porta da minha casa procurando por ele. Pedro só disse: ‘Caí’”. O marido dela ficou preso por sete meses, mas nos primeiros [meses] ela não conseguiu encontrá-lo. “Passaram-se os dias, o desespero foi batendo. Ouvia no rádio: ‘mataram fulano, mataram ciclano’. Eu tinha quatro filhos, não trabalhava. Ia todo dia na policia, no DOPS, no necrotério e não achava. Passei por muitas dificuldades porque não tinha fonte de renda. Quem me ajudou foram os companheiros”, lamenta.
Estas histórias fazem parte de um período cruel no qual muitas pessoas foram massacradas. Alguns militantes da periferia tiveram um papel importante na construção das bases, da disseminação das informações contra a ditadura militar. No entanto, esses ativistas não tinham dinheiro para pagar advogados, não estavam conchavados com os políticos e não tiveram opção do exílio. Sofreram e sofrem com o regime civil-militar que prevalece contra o povo preto e pobre em tempos de liberdade e democracia.
Redação PEM
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