“A Igreja é o povo. Então, onde eu estou, a Igreja também está”, diz devota católica

“A Igreja é o povo. Então, onde eu estou, a Igreja também está”, diz devota católica

Roberta é a segunda entrevistada da série “Mulheres de Fé”, que apresenta mulheres periféricas de várias crenças engajadas no dia a dia de suas comunidades

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Entrevista por Elisabeth Botelho. Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano. Distribuição: Vênuz Capel

Oração, fé e força é o que a religião católica significa para Roberta de Cassia. E ela busca refletir esses significados em seu cotidiano.

Aos 41 anos de idade, ela é catequista na Paróquia do Bom Conselho e Nossa Senhora Aparecida, localizada na Vila da Paz (região de Interlagos, zona Sul de São Paulo), em que vive há 15 anos. Roberta também é conhecida no bairro por seu trabalho: ela já foi agente comunitária no posto de saúde durante 4 anos e, atualmente, é professora de educação infantil no CEI Vila Nicarágua, fundada por uma freira católica. 

Ajudar o próximo é um mandamento que ela segue não apenas por ocupar cargos na igreja. É algo que está presente em sua vida desde muito nova, assim como enfrentamento ao racismo e ao machismo em todos os papéis que desempenha na vida.

Clique nas fotos para ampliar e confira trechos da entrevista em que ela fala de valores familiares, religiosos e a vida em sociedade.

Família é raiz e a comunidade são os ramos

“Minha infância foi muito triste (…) Eu via todo mundo com a mãe na escola e eu nunca tive a minha mãe numa apresentação. Eu era revoltada: por que que a minha mãe não pode vir e todas as mães vêm? (…) A minha mãe, desde quando eu tinha meses de vida, foi acidentada e parou de andar.”

“Sempre a vida toda nós dependemos de alguém para ajudar a gente, porque meu pai saía para trabalhar e alguém tinha que levar a gente pra escola, ajudar minha mãe a colocar a roupa no varal, a arrumar a casa, porque a gente era pequena na época, né?”

“[Minha mãe era] Católica, Apostólica e Romana, uma mulher de muita fé que recebia a comunhão em casa; os terços eram em casa. Minha mãe nunca perdeu a fé, nunca.”

“Quando eu era pequena, com 6 anos, meu cabelo era desse tamanho [gesticulou mostrando que tinha volume], e minha mãe cortou. Eu tinha muita revolta com ela até eu entender que é porque ela não conseguia pentear o meu cabelo”

“E aí, eu alisei a vida toda o cabelo. Quando comecei a trabalhar, era só alisado, porque eu tinha vergonha. Hoje eu me aceito como eu sou, mas na época não, antes não, nunca.”

“O que me fez aceitar? O meu filho. Ele falou: ‘mãe, o seu black é lindo’. O meu esposo falou: ‘você tá linda assim, você tá um mulherão’.”

Articuladora: a construção de uma história 

“Trabalhei por 4 anos no Poupatempo. Aí saí do Poupatempo, trabalhei 4 anos como agente de saúde, entrei em todas essas casas onde eu passo aqui.”

“Quando eu estava com 3 meses no posto, eu falei assim para minha enfermeira-chefe: ‘eu vou sair’. Ela: ‘vai sair por quê?’. Uma coisa é você falar oi na rua, outra é entrar na casa das pessoas e ver o que eu vejo.”

“Nós não devemos julgar as pessoas. A gente tem que praticar o bem, ajudar sem olhar. Isso eu aprendi muito na UBS, inclusive com a minha enfermeira.”

“Só que eu não tinha esse conhecimento. Então, tanto a UBS quanto o Poupatempo foram lugares que me fizeram ser melhor. Por mais que eu vá à igreja desde berço, desde quando eu nasci, desde a barriga da minha mãe, inserida nesses lugares eu aprendi muito a ser um ser humano melhor.”

“Eu tenho o telefone fixo em casa e não consigo tirar porque uma das pacientes que eu atendia estava no hospital com o marido (…) e ligou aqui em casa a cobrar para dar um recado para a família dela. Então, eu não consegui tirar o telefone de casa”.

Aprender e ensinar 

“Uma amiga minha de infância falou pra mim: ‘vai estudar’. Essa menina tá louca? Eu já tô velha, casada com o filho, vou estudar!?”

“Eu ia para faculdade de chinelo.. Eu caibo em qualquer lugar de chinelo, e isso aprendi com a minha madrinha de crisma também [Tia Rita]. Você não estando com a roupa amarrotada, ela tá passada, tá limpa, você não tá fedida, então você merece respeito independente da roupa que estiver”. 

“E aí eu fui chamada para trabalhar na creche CEI Vila Nicarágua e a maioria das crianças eram meus pacientes [da época do posto].”

“Hoje, eu me acho linda, falo para as crianças da creche: ‘olha o black da Roberta’. Tem uma menina que tem o cabelo mais solto que o meu, e ela falou pra mãe dela que o sonho dela era ter o cabelo igual ao meu.”

“Tem crianças que não se aceitam pretas, indígenas. Eu já vi uma criança preta olhando para o cabelo da outra que era liso, e olhando com desejo daquele cabelo. Eu já vi uma criança de cabelo liso falar que o cabelo do outro é duro, é feio.”

“Você é preto, você é lindo, se olha no espelho, respeite o amigo. (…)  A gente mostra as bonecas africanas, os erês, as histórias das bonecas, as abayomi. A educação infantil não é só para ficar com as crianças para as mães irem trabalhar.”

Professora também na igreja

“Quando eu comecei a transição, teve pessoas que me olhavam torto na igreja. No começo eu fiquei intimidada, sim. Depois, tranquilo, tanto que eu falava: ‘Senhor, eu venho por sua causa, e não por causa das pessoas que estão aqui.”

[Sua fé rege seus valores pessoais?] “Um pouco sim e não, porque eu não preciso da fé pra ser quem eu sou, pra ajudar o próximo. Eu ajudo mesmo. É de mim, é um dom de Deus.”

“Eu aprendi com tudo que eu sofri com a minha mãe lá atrás. Tem coisas que não têm valor, tem coisas que o dinheiro não paga. Você ajuda o próximo não só com dinheiro e com comida. Uma palavra, um carinho, um abraço, isso não tem dinheiro que pague.”

“Esse padre que veio para nós tem a cabeça muito aberta. O antigo pároco barrava, constrangia as pessoas que são lésbicas ou de outras religiões dentro da igreja. E esse padre novo já aceita as pessoas de braços abertos sem constrangimento. Ele quer que todos tenham acesso, independente de religião, raça, sexo, que se sintam à vontade dentro da igreja.”

“Tem mulher que o marido bebe, o esposo é alcoólatra e ela vai pra igreja pra não ficar em casa, porque sabe que ele vai chegar bêbado, vai falar palavras que vão magoar e pode até machucar ela. E vai como escape. Ah! Ou o filho que é usuário de droga, a pessoa vai se refugiar na igreja.”

A Roberta é… 

“Eu amo moda de viola, disco no vinil. Isso é uma coisa simples que me faz feliz, cantando, lembrando o passado. Lembro da minha mãe ouvindo Eli Corrêa, Paulo Barbosa, Zé Béttio, eu amo, tanto que quando eu cantava com as senhoras músicas antigas. E hoje, quando eu ouço as meninas novinhas cantando essas músicas antigas, eu falo: ‘meu Deus, hoje eu sei o que aquelas mulheres viam em mim’.”

“Se eu te falar que, para chegar onde eu cheguei teria que passar por tudo de novo, eu não quero. Eu acho que eu poderia chegar onde eu cheguei sem ter que passar tudo que eu passei, mas a Roberta é uma menina que não desiste, é alegre, é uma menina disposta que não olha o corpo. Eu olho a alma das pessoas, e isso foi do berço que eu aprendi”.

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7 Comentários

  1. Danielle S,S,santos disse:

    Roberta é uma imensidão de sentimentos bons! Infinita e fluida ..maravilhosa com seu jeito acolhedor

    e amor exagerado,um olhar que acolhe,um abraço que acalma …orgulho de ser irmã de outras vidas e comadre .

  2. Fernanda Chaves disse:

    Roberta arrasa , Ela é TOP 🤩👏

  3. Adriana disse:

    Essa é a Roberta que eu conheço, sincera , intensa,carinhosa , amiga ou seja uma mulher de Deus que eu tive o prazer de conhecer e quero levar para vida toda .
    Seja sempre assim amiga, que Deus esteja presente todos os dias de sua vida bjos Adriana

    • Eliana souza disse:

      Roberta minha comadre… minha amiga … minhã irmã…. tenho muito orgulho de você, é uma história de superação e de aprendizado e mostra como Deus é maravilhoso a todo tempo, em nossas vidas.

  4. Ro agradeço muito a Deus por ter você em minha vida, Sinto uma imensa gratidão e agradeço a Deus TDS os dias por ter colocado você na vida do meu irmão um homem maravilhoso e abençoado Amo vocês.

  5. Leila de Lara disse:

    Sou privilegiada por ter a amizade dessa mulher maravilhosa! Nossa amizade já dura há mais de 25 anos e sempre admirei sua fé, alegria e honestidade. Amo demais

  6. Márcia Regina Campidelli Gozzo disse:

    Roberta vc é incrível, mulher firme e forte, amei ler sua história, quantos desafios enfrentou! Fiz parte um pouquinho da sua vida quando fui sua professora na Escola Vicente Rao, você é uma menina inesquecível e já era, na época, muito boa, alegre e educada. Cada vez me orgulho mais de vc e me surpreende. Deus abençoe os caminhos que virão pela frente!

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Entrevista por Elisabeth Botelho. Fotos de Pedro Salvador. Edição de texto: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano. Distribuição: Vênuz Capel

Oração, fé e força é o que a religião católica significa para Roberta de Cassia. E ela busca refletir esses significados em seu cotidiano.

Aos 41 anos de idade, ela é catequista na Paróquia do Bom Conselho e Nossa Senhora Aparecida, localizada na Vila da Paz (região de Interlagos, zona Sul de São Paulo), em que vive há 15 anos. Roberta também é conhecida no bairro por seu trabalho: ela já foi agente comunitária no posto de saúde durante 4 anos e, atualmente, é professora de educação infantil no CEI Vila Nicarágua, fundada por uma freira católica. 

Ajudar o próximo é um mandamento que ela segue não apenas por ocupar cargos na igreja. É algo que está presente em sua vida desde muito nova, assim como enfrentamento ao racismo e ao machismo em todos os papéis que desempenha na vida.

Clique nas fotos para ampliar e confira trechos da entrevista em que ela fala de valores familiares, religiosos e a vida em sociedade.

Família é raiz e a comunidade são os ramos

“Minha infância foi muito triste (…) Eu via todo mundo com a mãe na escola e eu nunca tive a minha mãe numa apresentação. Eu era revoltada: por que que a minha mãe não pode vir e todas as mães vêm? (…) A minha mãe, desde quando eu tinha meses de vida, foi acidentada e parou de andar.”

“Sempre a vida toda nós dependemos de alguém para ajudar a gente, porque meu pai saía para trabalhar e alguém tinha que levar a gente pra escola, ajudar minha mãe a colocar a roupa no varal, a arrumar a casa, porque a gente era pequena na época, né?”

“[Minha mãe era] Católica, Apostólica e Romana, uma mulher de muita fé que recebia a comunhão em casa; os terços eram em casa. Minha mãe nunca perdeu a fé, nunca.”

“Quando eu era pequena, com 6 anos, meu cabelo era desse tamanho [gesticulou mostrando que tinha volume], e minha mãe cortou. Eu tinha muita revolta com ela até eu entender que é porque ela não conseguia pentear o meu cabelo”

“E aí, eu alisei a vida toda o cabelo. Quando comecei a trabalhar, era só alisado, porque eu tinha vergonha. Hoje eu me aceito como eu sou, mas na época não, antes não, nunca.”

“O que me fez aceitar? O meu filho. Ele falou: ‘mãe, o seu black é lindo’. O meu esposo falou: ‘você tá linda assim, você tá um mulherão’.”

Articuladora: a construção de uma história 

“Trabalhei por 4 anos no Poupatempo. Aí saí do Poupatempo, trabalhei 4 anos como agente de saúde, entrei em todas essas casas onde eu passo aqui.”

“Quando eu estava com 3 meses no posto, eu falei assim para minha enfermeira-chefe: ‘eu vou sair’. Ela: ‘vai sair por quê?’. Uma coisa é você falar oi na rua, outra é entrar na casa das pessoas e ver o que eu vejo.”

“Nós não devemos julgar as pessoas. A gente tem que praticar o bem, ajudar sem olhar. Isso eu aprendi muito na UBS, inclusive com a minha enfermeira.”

“Só que eu não tinha esse conhecimento. Então, tanto a UBS quanto o Poupatempo foram lugares que me fizeram ser melhor. Por mais que eu vá à igreja desde berço, desde quando eu nasci, desde a barriga da minha mãe, inserida nesses lugares eu aprendi muito a ser um ser humano melhor.”

“Eu tenho o telefone fixo em casa e não consigo tirar porque uma das pacientes que eu atendia estava no hospital com o marido (…) e ligou aqui em casa a cobrar para dar um recado para a família dela. Então, eu não consegui tirar o telefone de casa”.

Aprender e ensinar 

“Uma amiga minha de infância falou pra mim: ‘vai estudar’. Essa menina tá louca? Eu já tô velha, casada com o filho, vou estudar!?”

“Eu ia para faculdade de chinelo.. Eu caibo em qualquer lugar de chinelo, e isso aprendi com a minha madrinha de crisma também [Tia Rita]. Você não estando com a roupa amarrotada, ela tá passada, tá limpa, você não tá fedida, então você merece respeito independente da roupa que estiver”. 

“E aí eu fui chamada para trabalhar na creche CEI Vila Nicarágua e a maioria das crianças eram meus pacientes [da época do posto].”

“Hoje, eu me acho linda, falo para as crianças da creche: ‘olha o black da Roberta’. Tem uma menina que tem o cabelo mais solto que o meu, e ela falou pra mãe dela que o sonho dela era ter o cabelo igual ao meu.”

“Tem crianças que não se aceitam pretas, indígenas. Eu já vi uma criança preta olhando para o cabelo da outra que era liso, e olhando com desejo daquele cabelo. Eu já vi uma criança de cabelo liso falar que o cabelo do outro é duro, é feio.”

“Você é preto, você é lindo, se olha no espelho, respeite o amigo. (…)  A gente mostra as bonecas africanas, os erês, as histórias das bonecas, as abayomi. A educação infantil não é só para ficar com as crianças para as mães irem trabalhar.”

Professora também na igreja

“Quando eu comecei a transição, teve pessoas que me olhavam torto na igreja. No começo eu fiquei intimidada, sim. Depois, tranquilo, tanto que eu falava: ‘Senhor, eu venho por sua causa, e não por causa das pessoas que estão aqui.”

[Sua fé rege seus valores pessoais?] “Um pouco sim e não, porque eu não preciso da fé pra ser quem eu sou, pra ajudar o próximo. Eu ajudo mesmo. É de mim, é um dom de Deus.”

“Eu aprendi com tudo que eu sofri com a minha mãe lá atrás. Tem coisas que não têm valor, tem coisas que o dinheiro não paga. Você ajuda o próximo não só com dinheiro e com comida. Uma palavra, um carinho, um abraço, isso não tem dinheiro que pague.”

“Esse padre que veio para nós tem a cabeça muito aberta. O antigo pároco barrava, constrangia as pessoas que são lésbicas ou de outras religiões dentro da igreja. E esse padre novo já aceita as pessoas de braços abertos sem constrangimento. Ele quer que todos tenham acesso, independente de religião, raça, sexo, que se sintam à vontade dentro da igreja.”

“Tem mulher que o marido bebe, o esposo é alcoólatra e ela vai pra igreja pra não ficar em casa, porque sabe que ele vai chegar bêbado, vai falar palavras que vão magoar e pode até machucar ela. E vai como escape. Ah! Ou o filho que é usuário de droga, a pessoa vai se refugiar na igreja.”

A Roberta é… 

“Eu amo moda de viola, disco no vinil. Isso é uma coisa simples que me faz feliz, cantando, lembrando o passado. Lembro da minha mãe ouvindo Eli Corrêa, Paulo Barbosa, Zé Béttio, eu amo, tanto que quando eu cantava com as senhoras músicas antigas. E hoje, quando eu ouço as meninas novinhas cantando essas músicas antigas, eu falo: ‘meu Deus, hoje eu sei o que aquelas mulheres viam em mim’.”

“Se eu te falar que, para chegar onde eu cheguei teria que passar por tudo de novo, eu não quero. Eu acho que eu poderia chegar onde eu cheguei sem ter que passar tudo que eu passei, mas a Roberta é uma menina que não desiste, é alegre, é uma menina disposta que não olha o corpo. Eu olho a alma das pessoas, e isso foi do berço que eu aprendi”.

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