O sagrado popular: A ancestralidade manifesta no dia a dia de Rafael Cristiano

O sagrado popular: A ancestralidade manifesta no dia a dia de Rafael Cristiano

É na reunião familiar que muitas pessoas têm trocas entre gerações e culturas, as quais possibilitam histórias, acolhimento e o que Rafael Cristiano chama de ancestralidade. Leia na quinta e última reportagem da série De Geração para Geração.

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De Geração para Geração | Neste fim de ano, marcado por reencontros familiares ou por saudades de quem não está mais entre nós, a Periferia em Movimento publica uma série de textos sobre a importância dessas relações com pessoas de diferentes gerações para o desenvolvimento infantil

A repórter Fernanda Souza entrevista Rafael Cristiano

O clima de final de ano na quebrada carrega muitos significados para além do consumo e diversão. É na reunião familiar que muitas pessoas têm trocas entre gerações e culturas, as quais possibilitam histórias, acolhimento – e o que Rafael Cristiano, designer da PEM, chama de ancestralidade. Ela que, mesmo despretensiosamente, mantém o popular na roda da conversa.

Troquei uma ideia com ele sobre como a ancestralidade e a cultura popular estão presentes na vida dele – e no final das contas, eu lembrei que estão na minha também.

“Fui criado como se meus primos e primas fossem uma extensão da nossa irmandade, então eram quase meus irmãos e irmãs. Minha mãe sempre foi muito ligada com minhas tias, sempre tiveram uma relação que sempre admirei. Isso se estendeu pra gente. Era delicioso’’

Rafael Cristiano, artista, educador e designer na Periferia em Movimento

Rafael, de 29 anos, nasceu e cresceu no Cantinho do Céu, um bairro do fundão do Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. Como ele mesmo acentua, foi criado por uma numerosa família NEGRA do interior da Bahia – a mãe dele, do Sul do Estado, numa cidade chamada Pau D’alho ; e o pai, de Apurá. Aquele papo de muitos tios e tias, primos e primas, pessoas conhecidas (que sempre tem no rolê familiar), inclusive em outra ponta da cidade, como no Capão Redondo. 

Um começo de história tão presente

Fernanda Souza: Rafa, aqui a troca familiar já é muito bem desenhada, começando por seus pais do interior da Bahia que vão trazer histórias às quais vão se somar com cada cultura única de pessoas da periferia paulistana. Como foi essa formação da cultura popular para você?

Rafael Cristiano: A minha família gigante sempre se reunia e sempre contava histórias sobre infância, falando dos meus avós e bisavós. Minha mãe sempre contou que meu avó tinha muito respeito pela mata e muito cuidado quando entrava no mato. Então, tinha respeito por uma figura que na palavra da minha mãe era a Caipora. Assim, ele entrava no mato e sempre deixava fumo, cachaça, para aquela figura que seria a Caipora, essa espécie de entidade. 

Fernanda: E você gostava? O que lembra de sentir ao ouvir sobre essas histórias e esses personagens?

Rafael: Minha mãe contava das perseguições no meio da mata se não fizesse as oferendas. Eu, quando criança, ouvia essas histórias e amava muito. Amava essas coisas que eles contavam com muita veracidade. Dava medo de tão real que aquilo era, porque para ela era real, para meu avó era real. Então, essas histórias não foram contadas pra gente como história pra dormir. Eram contadas como o dia que elas se perderam, faziam parte do mundo material.

Rafael Cristiano (foto: Arquivo pessoal)

Pausa na continuidade 

Por um bom tempo, a cultura popular esteve ali na vida de Rafa, de forma natural não só nas ideias, mas também de corpo, pois era possível que se perdesse na mata fosse por causa de uma falta de respeito a uma entidade Caipora.

Eu também me lembro dessa presença, que não havia problema em existir um Curupira que cuidava da mata ou uma figura que cuidava do mar porque aquele espaço era a casa dela aquele espaço. Mesmo que o medo habitasse em meu coração pequenino, era possível desenhar um mundo em que meus avós vivessem com esses seres, onde eu também torcia de algum modo para conhecer.

Fernanda: Onde foram parar essas histórias quando você cresceu? Eu me lembro que as perdi. 

Rafael: Em determinado momento na minha adolescência, essas histórias que a gente ouvia acabaram se tornando o dito “folclore”. Ela não era mais uma história que dizia sobre a relação de respeito pela floresta que meu avô e minha avó tinham. Passou a ser mentira pra mim, a ser história boba para dormir e de uma cultura chucra que não tinha conhecimento. Você vai pra escola e aprende aquilo num livrinho do folclore, uma história de um povo em desenvolvimento. Então, meu avô, um homem adulto, continuar acreditando nessas coisas era muito ilógico, [e é isso] que a educação brasileira e religião cristã colocam no Brasil.

Fernanda: A religião também não forçou algo para você? Eu lembro que a ideia do cristianismo ocidental demoniza os espíritos.

Rafael: A religião que eu seguia, cristã, tinha muito essa coisa de que a gente não pode acreditar em outros espíritos porque é um trabalho do cristianismo de apagamento dessa cultura dessa terra. Eu passo a me afastar disso, como consequência. 

Reencontro com passado

Fernanda: Se hoje estamos refletindo sobre isso, é porque você percebeu e resgatou o que era seu. Como foi isso?

Rafael: Tem 2 momentos fundamentais. Quando começo a fazer teatro e minha mãe vai assistir uma peça que eu fiz na rua, em que eu passava pela feira. Ela assiste e diz que já fez isso na Bahia quando era criança. Minha família que era responsável pela Festa de Reis que tinha na cidade, então minha família é uma família de artistas porque ela fala de 2 tios também especiais. Através disso eu me conecto com a cultura popular pelo teatro, pois sou um processo de continuidade.

Fernanda: Você é do candomblé, o que isso tem a ver? Ancestralidade é muito usada pois remete a quem veio antes de você e todo um legado deixado, segundo as tradições religiosas.

Rafael: Depois de alguns anos eu começo a ter contato com o candomblé e começo o processo de iniciação ao culto e me torno um Iaô, alguém iniciante. Dentro desse processo todo de iniciação, descubro que sou de Ossain, um orixá que é dono de todas as folhas. Ele sabe o segredo delas, é um curandeiro mas que também sabe matar através das folhas. É um Orixá de uma perna só, que vive no mato, não gosta de muito contato com as pessoas e assim na mata aprendeu todos os segredos de todas as folhas, sabendo conversar com elas.

Fernanda: Isso de alguma forma me parece conectar com o personagem da história do seu avô. Isso foi um momento para você?

Rafael: Quando meu pai de santo me disse que, ao entrar na mata eu deveria entregar fumo, cachaça e outras coisinhas que são da religião… Na hora eu me conectei com a história da minha infância, com essas histórias que eu ouvia quando era criança do meu avó e minha mãe entrando na mata. Lembro exatamente da fala do meu pai de santo: ‘Filho, Ossain é uma espécie de Caipora, Curupira, se fôssemos buscar no sincretismo’. Na hora, eu chorei muito, pois eu sou uma atualização dessas histórias.

Este conteúdo faz parte da série de reportagens “De Geração para Geração”, da Periferia em Movimento, e conta com apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV)

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