Por Xan Marçall*
Dia 29 de janeiro de 2004, mulheres trans, travestis e homens trans, foram em Brasília lançar a campanha “Travesti e respeito”. Este ato, em pleno congresso nacional, marcou a história do movimento contra a transfobia, na luta pelo direito à vida e a participação na partilha social. Afinal de contas, exigir respeito e visibilidade de pessoas Trans/Travestis é reconhecer socialmente, que nossas existências são políticas e que historicamente estamos construindo um trajeto que reivindica dignidade. As mais antigas dizem: “desde que o mundo é mundo, temos lutado e estamos aqui.”
Importante nessa data reverberar o bordão “Travesti não é bagunça”, compreendendo, que pessoas Trans/ Travestis têm corroborado significativamente na reelaboração de práticas cotidianas da vida pública e privada, orientando perspectivas outras para pensarmos corpo, gênero, desejo, sexualidade e modos de vida. Não somos bagunça! Mas conhecemos o Caos.
Se engana quem pensa que o mundo é essencialmente binário.
Neste sentido, ter a consciência da institucionalização da vida, é compreender que vivemos socialmente projetos políticos e pedagógicos, pensado, imaginado por alguéns.
Esses pactos, estruturam a priori, o convívio comunitário. Legitimam, oficializam, normatizam, mas também invisibilizam, marginalizam e oprimem outras narrativas de mundo.
Assim, exercitar a prática da democracia, continua sendo uma possibilidade de coexistir, de maneira respeitosa na diferença e na diversidade. Ainda que seja desgastante e cansativo. Insistir pelo direito à vida é fundamental.
Afinal as marcas coloniais deixaram uma herança simbólica, pautada em discursos eugenistas, uma política que não discrimina apenas para diferenciar, mas para promover abjeção, indiferença e ódio.
Durante séculos (e ainda hoje para alguns grupos), nem indígenas nem negros eram/são considerades pessoas ( para não dizer humanidade)… Um sistema baseado em uma perspectiva centrada no homem-euro-cis-hetero-branco, que é o invasor, explorador, o assassino em nome das bandeiras, que carregam o simbolo da “Cruz e a Espada”, da “Ordem e Progresso, ou a “Biblia, a Bala e o Boi”. Dessa maneira, tudo o que destoa dessa narrativa é desconsiderado, não é realidade, não é de verdade: “É blasfêmia, heresia, fantasia, monstruosidade”.
Graças em especial ao Movimento de Travestis, espalhados pela América Latina, temos redescoberto e compreendido modos de vida que transbordam a bipolaridade sexual e de gênero em diferentes culturas e tempos.
Atualmente, é fácil encontrar uma significativa quantidade de textos na internet que abordem a questão das identidades Trans/Travesti no Brasil, na América Latina e no mundo. Campanhas publicitárias sobre o tema, em mídias populares têm dado atenção ao debate. E mesmo estudos antropológicos têm comprovado que entre os povos originários e africanos esta era uma realidade partilhada e assegurada comunitariamente.
O que a história oficial não permitiu que fosse contada, nunca deixou de existir.
Mas continuam sendo perseguidas, vigiadas porque questionam, não apenas contestam dogmas e moralidades, dissidem da hegemonia cultural. Mas porque representam um perigo contra o Sistema Colonial e Capitalista.
Afinal, expõe a História, forjada no medo , na dor e sofrimento. Sentimentos deliberados , para adoecer e matar. Fazer desaparecer até exterminar.
Não é por acaso que adoecimentos e mortes, causados tanto pela pandemia quanto os diversos movimentos extremistas de direita espalhados no Brasil e no mundo têm contribuído para essa patologia simbólica e material que temos vivenciado. Sobretudo pessoas Trans/Travestis.E talvez o problema não seja necessariamente morrer , mas padecer sob as imagens da miséria, da escassez, da doença, da fome, e da falta de promoção acesso às oportunidades. Reiterando assim, imagens de desesperança.
Tenho refletido profundamente sobre esse momento de crise que estamos vivendo no país. E tenho acreditado que esta é, contraditoriamente, a oportunidade ideal para fomentarmos novas produções de saberes, escavarmos imaginários outros e impulsionarmos narrativas que queremos desenvolver em um projeto de Brasil que já se apresenta em 2023.
Importante falar de Imaginários, em tempos em que imaginar, devanear e sonhar com outras realidades do mundo, se apresenta como um desejo urgente de reinvenção. De reencantamento do mundo.
Imaginário aqui é traduzido não como um mundo irreal, ilusório e fantástico, mas como elaborações simbólicas, que sensivelmente, moldam a psique, o espírito individual e coletivo.
Compreender que vivemos a partir de um Imaginário é tensionar uma reflexão problematizadora: Quem determina a realidade?
Quais coletividades são impulsionadas e quais são invisibilizadas?
Quem elas representam? E o que querem representar/ apresentar?
Neste sentido, penso que o reencantamento do Brasil, está nas práticas e saberes ancestrais que permanecem vivos ( apesar de séculos de colonização) no Norte e Nordeste brasileiro. Ensinamentos orientados por cosmovisões afro-indígenas. Agenciamentos ancestrais necessários de continuidade e permanência.
Reencantar parte do pressuposto de uma vida que não se desligou de sua dimensão ecológica, estetizante, anímica.
Acreditar que o Norte e o Nordeste são territórios que potencialmente tem muito a ensinar ao resto do Brasil, é situá-lo historicamente na invenção desse país. A região com um maior contingente de descendentes de povos originários e Africanos. Onde estão localizados o maior número de quilombos e reservas indígenas do país. Uma cultura profundamente marcada pelas perspectivas afro-indígenas.
Não foi por um acaso que a Capital do Brasil saiu da Bahia em direção ao Rio de Janeiro. E que no Norte e Nordeste os inúmeros levantes populares contra a Colônia preocuparam as elites imperiais.
O Norte e Nordeste são sempre reverberados, quando imagens de insurreição cultural precisam ser impulsionadas na tentativa de Integrar para não Entregar… inclusive esta é palavra de ordem da abertura da Transamazônica, mas não a serviço do progresso , e sim do furto, da apropriação, das demarcações ilegais de terra.
Brincando com o trocadilho, tenho refletido e compreendido o que é ser uma Trans-AMAZONIDA. Essa Territorialidade localizada no corpo Trans/Travesti demarca processos históricos de dispersão/diáspora, induzido pelo sucateamento, pela expropriação, abandono, indiferença e invisibilização de existências Ts fora do eixo sudeste-sul. A metrópole representativa, sobre as narrativas de Brasil. Nós nortistas e nordestines precisamos sempre fazer mais, sempre estar bem apresentável, para não cair no risível-ridículo, nós precisamos correr mais, nos deslocar mais vezes para finalmente, termos acesso a tecnologias de qualidade, a informação, a distribuição da renda, à saúde e educação.
Chegar aos 36 anos, sendo nortista, da Amazônia , me compreendendo interseccionalmente, localizando a realidade geopolítica que sou atravessada. No país que vida de pessoas Trans travesti se encerram aos 35, é uma celebração! Mas também um compromisso com a espiritualidade, com a Ancestralidade Travesti/ Trans! Com os ensinamentos que são passados de boca ouvido, e nas intervenções diárias de pensar o mundo a partir de uma ética Trans profundamente engajada por uma retomada indígena e africana… reencantada. Existências trans/Trans indissociáveis da experiência estética, poética, religiosa, metafísica, mística, sagrada, ritualística, política.
Que neste 29 de janeiro de 2022 possamos festejar pessoas Trans/Travestis que chegaram a velhice. Que possamos enaltecer a presença de diversas Trans/Travestis nortistas e nordestinas que nos abriram e abrirão as portas do futuro. Um futuro que se debruça sobre Imagens de prosperidade, saúde, beleza, dinheiro, abundância. Encantamento.
*Xan Marçall é uma Kaaboka Amazonida de Mairi do Pará. Professora de Teatro, atriz, arte -educadora e artivista. Atua contra o estigma da Aids e sobre as transgeneridades na educação e na arte. Membra fundadora do Coletivo DAS LILITHS-BA, agrupamento artístico do nordeste brasileiro pioneires em encenar as primeiras narrativas cênicas de Xica Manicongo e Tibiras. Teve seus trabalhos PATUÁS expostos em Berlin e na Guatemala. Seu filme de estreia IAUARAETE tem circulado em diversos festivais nacionais e internacionais.
Redação PEM
1 Comentário
Q maravilha ler Xan Marçal!!! Reflexões importantíssimas, necessárias e urgentes!!!