Reportagem de Hysa Conrado. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
É madrugada e Ana*, de 44 anos, acorda mais uma vez depois de mal conseguir fechar os olhos. A agitação da noite tem apenas um motivo: vontade de apostar em um jogo on-line.
Durante um ano e meio, as bets não só tiraram o sono da diarista, como também a tornaram refém de um vício que a endividou e a afastou da família.
Foi por curiosidade que ela começou a apostar em 2022. Queria ver como era e colocou R$ 40 em um dos jogos da plataforma Blaze. Em poucos meses, esse valor passou a ser destinado diariamente para os jogos, quase como uma despesa fixa.
“Eu achei que eu ia começar a ganhar dinheiro. Quase todos os dias eu ganhava R$ 200, R$ 300, até R$ 400. Só que o que eu ganhava, eu apostava de novo e acabava perdendo. Nunca comprei absolutamente nada com esse dinheiro”, afirma.
Depois de um tempo, todo o rendimento do seu trabalho como diarista acabou sendo usado para as apostas. O problema ficou ainda pior quando ela parou de trabalhar e passou a se dedicar integralmente aos jogos.
“A situação ficou bem crítica, porque chegou um tempo em que eu levantava às 7h da manhã e jogava até às 22h. Sem parar. Eu não trabalhava, não comia mais, fiquei sem limpar minha casa, sem fazer almoço, sem fazer absolutamente nada, somente sentada no sofá jogando”, lembra.
Nessa época, que considera a mais crítica, foi quando Ana se endividou.
Além de não conseguir trabalhar, ela também fez uso de crédito bancário e pediu dinheiro emprestado a pessoas conhecidas, com a desculpa de que precisava da quantia para resolver pendência. Além de nunca ter sacado o dinheiro que ganhava com as apostas, ela perdeu cerca de R$ 20 mil com os depósitos.
Foi seu filho mais velho quem decidiu interferir na situação e sugeriu que ela procurasse um psicólogo. Mas Ana recusou firmemente.
“Na minha cabeça eu estava fazendo investimento, não tinha problema nenhum comigo. Eu não aceitava que eu precisava de ajuda e estava em um caminho ruim”, conta.
Só depois que a vontade de jogar começou a tirar seu sono e a causar crises de ansiedade que ela aceitou procurar ajuda. Em abril de 2023, foi até o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, onde mora.
A primeira impressão foi a de que o serviço não estava preparado para lidar com o problema e ela chegou a ouvir de profissionais que não havia nenhum protocolo para esse tipo de situação.
Mesmo assim, Ana recebeu assistência e ficou três semanas internada, sem celular e, consequentemente, sem acesso às bets.
A internação coincidiu com o Dia das Mães e Ana recebeu autorização para passar a data com a família. Foi quando teve a primeira recaída.
“Internada, me senti protegida de mim mesma. Mas quando cheguei em casa, a primeira coisa que eu fiz foi jogar. Meu filho e meu marido ficaram revoltados” – Ana*, ex-jogadora compulsiva.
De volta ao CAPS, Ana foi internada novamente por uma semana. Durante esse período, ela conta que passou a tomar uma quantidade ainda maior de remédios, o que a deixou dopada, sem a compreensão do que sentia naquele momento.
“Fiquei muito mal. Uma psicóloga falou que era fácil sair dessa situação, tratou como se fosse algo simples e comum. A saúde pública não está preparada para isso”, afirma.
Depois da segunda internação, Ana voltou para casa com a recomendação de deixar as bets aos poucos, e passou a jogar com um valor fixo, apenas aos sábados, com a supervisão do marido e do filho.
Foi no CAPS onde conheceu o psicólogo que a acompanha hoje e a ajudou a superar a dependência. Atualmente, as consultas são realizadas de forma particular e o profissional estabeleceu um valor social para que Ana conseguisse arcar e não ficasse sem o acompanhamento.
“Hoje estou com o nome limpo, trabalhando, tomando apenas dois comprimidos por dia, dei entrada em um apartamento e há alguns meses comecei a investir um pouquinho por mês no CDI. Mas isso porque tive uma grande rede de apoio do meu marido, filhos e do meu psicólogo. Mas, claro, só deu resultado porque eu aceitei esse apoio”, afirma.
Prazer fora do comum
A psicóloga Laura Helena Grosso explica que uma das dificuldades para enfrentar a compulsão por jogos de apostas é abrir mão da sensação de prazer que eles provocam.
“Não é um prazer que a gente tem com as coisas do cotidiano, é muito maior. Então, é como se a gente ensinasse o cérebro que esse é o prazer que tem que existir”, observa a psicóloga, que é voluntária do Ambulatório do Jogo Patológico do Programa Transtornos do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas.
“Acho que um dos principais desafios é a pessoa entender que talvez ela não vá sentir esse prazer em outro lugar da sua vida, mas porque ele não é comum. E ainda, talvez, que vá ter que redescobrir quais as coisas que dão prazer e que não envolvam o jogo”, ressalta Laura Helena.
É ainda mais complicado quando as bets mobilizam o ciclo social da pessoa apostadora.
No caso das apostas esportivas, é comum, por exemplo, que um campeonato específico ou uma partida decisiva estimulem grupos de amizades a fazerem apostas. Nessas situações, quando há um problema de compulsão, é importante rever até mesmo as relações pessoais.
“Talvez a pessoa precise se afastar desses amigos e ficar um tempo acompanhando o esporte de outro jeito. Enfim, o jogo toma muitas áreas da vida, e esse é um problema também: recuperar essas relações que simplesmente você esqueceu ou realmente foram afetadas, como quando o apostador faz dívidas em nome da família. A pessoa tem que reconstruir as relações”, explica a psicóloga.
E se o prazer é fora do comum, a falsa sensação de sorte também adiciona uma emoção a mais ao ato de apostar. Outra dificuldade nesses casos é entender que os resultados são aleatórios e que não dizem respeito à pessoa que está apostando em particular.
“As propagandas passam essa falsa impressão de que você vai apenas testar a sua sorte, de que é só entretenimento e lazer. E o que fica é: como que uma coisa que é lazer vai me gerar uma dívida? Por exemplo, a gente vai ao cinema. Alguém já ficou em dívida porque foi ao cinema? Não existe jogo responsável, e essa é outra coisa que as propagandas gostam de falar”, afirma a psicóloga.
Questão de saúde pública
Apesar do vício em jogos de apostas não ser algo novo na sociedade, é a primeira vez que o serviço público de saúde lida com o problema relacionado a plataformas on-line.
Além do fácil acesso na palma da mão, esses aplicativos ainda são constantemente promovidos por pessoas famosas e influenciadoras digitais, ao mesmo tempo em que falta compreensão sobre os danos que podem causar à saúde mental e financeira das pessoas.
Para a psicóloga Laura Helena Grosso, é evidente que existe um problema de saúde pública. O noticiário já dá conta de pessoas que arrastaram a si e familiares para dívidas exorbitantes, ou mesmo que tiraram a própria vida por conta dessas consequências.
“Com certeza é um problema de saúde pública. Porque os profissionais não necessariamente sabem lidar com o jogo. A fila no ambulatório é grande e está sempre aumentando, mas um ambulatório não vai dar conta da demanda de um país” – Laura Grosso, do Hospital das Clínicas.
Uma pesquisa feita pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que 9,3 milhões de pessoas usam bets no Brasil. O número mostra que a modalidade superou o jogo do bicho e é a segunda na preferência do público brasileiro para apostas, atrás apenas das loterias.
Os dados, que fazem parte do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) feito para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), também revelam que 66,8% das pessoas que jogam fazem uso de risco ou problemático dessas plataformas.
Foi pensando neste cenário que o psicólogo Diogo Pierrot criou recentemente um grupo voltado ao tratamento de compulsão por jogos no CAPS AD III, do Jardim São Luiz, na zona Sul de São Paulo.
Por se tratar de uma unidade voltada para o tratamento de dependência em álcool e drogas, o profissional explica que o trabalho é direcionado a pessoas que fazem ou já fizeram uso de substâncias psicoativas.
“A população que acessa o CAPS ainda tem um olhar de que as bets não estão no lugar do adoecimento, que não tem como ter ajuda e tratar. As pessoas têm essa questão do problema com jogos também muito associada ao uso de substância, e não conseguem reconhecer essa situação como uma questão de saúde mental”, afirma.
Com o grupo, o psicólogo pensa em articular um material de estudo para desenvolver possíveis técnicas e estratégias de cuidado para esse problema. Com essa iniciativa, o SUS pode assimilar e desenvolver novas diretrizes de atendimento voltado a pessoas que estejam vivenciado algum tipo de compulsão por jogos de aposta on-line.
“É toda uma questão de vulnerabilidade que faz a pessoa acreditar que ela vai ter um ganho ali, que aquilo de alguma forma vai mudar a vida dela. Eu sou da periferia e sou usuário do SUS, então eu acho que tenho que olhar para isso com muita sensibilidade” – Diogo Pierrot, do CAPS São Luiz.
“E acho que o que falta é as pessoas poderem acolher o sofrimento mesmo. Porque, para além do sofrimento do jogo e financeiro, às vezes a pessoa vai ficar deprimida e vai ter outras questões que ela pode cuidar”, afirma o psicólogo.
Em nota enviada à Periferia em Movimento, a Secretaria Municipal de Saúde reforçou que as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) são a porta de entrada para o atendimento oferecido pelo CAPS. Nesses locais, qualquer pessoa pode buscar acolhimento e contar com o apoio da equipe multiprofissional para uma avaliação e, se necessário, encaminhamento.
O Ministério da Saúde não retornou à solicitação feita pela reportagem e não deixou claro se há e quais são as diretrizes e protocolos estabelecidos pelo SUS para atender o problema.
*Nome fictício usado para proteger a identidade da entrevistada.