300 mil mulheres negras marcham em Brasília: ‘Somos o alicerce da sociedade’, diz Nani Cruz

300 mil mulheres negras marcham em Brasília: ‘Somos o alicerce da sociedade’, diz Nani Cruz

Com propostas políticas de transformação social, mulheres negras brasileiras e de todo o mundo se reuniram em Brasília em busca de reparações históricas e bem viver

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Tempo de leitura: 10 minutos

Por Eliane Almeida (Makota Mwana Tembwa Nkulu). Edição: Hysa Conrado. 

Foi sob as bençãos de Matamba* que mulheres de 37 países e de todo território nacional chegaram à Brasília. A chuva, que ora era intensa, ora mansa e entremeada por um sol tímido, deu oportunidade a Hongorô** de nos brindar com seus arco-íris.

Desde o dia 22 de novembro, Brasília foi tomada pela presença feminina negra que chegava com o intuito de transformar a dinâmica da capital federal com a II Marcha das Mulheres Negras: Por Reparação e Bem Viver, a se realizar em 25 de novembro.

Foram três anos de organização capazes de tornar um ato político nacional em global. Mulheres de países africanos e diaspóricos vieram ao Brasil participar desse momento histórico. Delegações dos mais diversos lugares do Brasil cruzaram o país com a finalidade de marcharem pelo fim do racismo, por melhores qualidade de vida para o povo negro, contra a violência do braço armado do estado, pelo bem viver.

Os dias 22, 23 e 24 foram de formação política com atividades formativas por toda Brasília. Aconteceram encontros que discutiram análises de conjuntura, pensaram estratégias de bem viver, encontros que discutiam a luta antirracista em nível global, conversas com parlamentares negras.

O movimento Mulheres Negras Decidem (MND) reuniu, em 24 de novembro, na mesa “Mulheres Negras na Política Institucional: desafios e oportunidades de futuro” Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial; Erika Hilton, deputada federal; Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima; Benedita da Silva, deputada federal; Jô Cavalcanti, ex-deputada federal e Áurea Carolina, ativista e ex-deputada federal.

O ânimo das mulheres presentes e as possibilidades de trocas geracionais teve na fala da ministra Marina Silva o primeiro chamado. Depois de explicar o quanto foi difícil ser a pioneira na luta pela proteção do meio ambiente na estrutura de um ministério, a ministra deixou um recado:

“Tive muitas perguntas sem resposta na construção do meu caminho. Não tive referências por ser pioneira. Mesmo assim, alcancei o básico. Já não queremos mais o básico, queremos a plenitude.” – Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima

Benedita da Silva se dedicou a falar sobre a importância do envolvimento das mais jovens na construção de uma agenda política que dê à mulher negra o protagonismo.

“Precisamos contabilizar nossas conquistas e falar mais sobre elas. Precisamos partilhar nossas vitórias. Tenho orgulho demais de vocês jovens e hoje, por causa de vocês, é possível nos olhar e partilhar. Vamos todas à luta porque a representatividade no congresso é essencial para nosso sucesso.” – Benedita da Silva, deputada federal

Anielle Franco falou das críticas que recebe e da luta que tem sido caminhar enquanto ministra. Ela afirma que as mulheres negras formam, hoje, o movimento político mais organizado no Brasil.

“Está para nascer grupo mais organizado do que o das mulheres negras. Que cuidemos umas das outras. Estamos aqui pelo coletivo. Arrombaremos as portas. Marchamos por um projeto político de poder, eles gostem ou não”, conclui.

Mulheres Negras em Marcha

Foto: @eu_sou_yane

As marchantes foram dormir na noite de 24 de novembro com uma chuva torrencial que caía dos céus de Brasília e se intensificou durante toda a madrugada, com raios e trovões. Caravanas de todo o país chegavam e a preocupação com a realização da Marcha passou a ser o foco naquela noite e madrugada.

A chuva que parecia nunca ter fim só acalmou por volta das 7 horas da manhã. Mas, como a ancestralidade não abandona as suas, o céu se abriu e o sol apareceu para honrar as mulheres de luta.

Foram as mães de santo, mametos, yás, makotas, ekedjis, que abriram os caminhos para que os quatro trios elétricos ocupassem a Esplanada dos Ministérios juntamente com as delegações que vieram de todos os cantos do país.

Foi um mar de cores que tomou por completo a avenida mais poderosa do Brasil. Faixas, gritos de guerra, som de tambores: 300 mil vozes cantavam pela vida negra. A Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver foi global e mostrou o poder da organização das mulheres negras.

Periferia paulistana na luta

Duas lideranças importantes das quebradas da cidade de São Paulo estiveram presentes na II Marcha de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Nani Cruz, Coordenadora da Central de Movimentos Populares e Fundadora do Centro de Promoção e Resgate a Cidadania do Grajaú (CEPROCIG) e Laís Guimarães, educadora física, navegadora na represa Billings e liderança na Roda de Afeto de Mulheres no Grajaú.

 

Nani Cruz diz que, 10 anos depois, a Marcha mostra o quanto cresceu o potencial da mulher negra.

Quando falamos de reparação, falamos de mulher negra no poder. Precisamos estar nos espaços de decisão. Somos o alicerce da sociedade. Portanto, precisamos ser ouvidas, ter visibilidade.” – Nani Cruz, Coordenadora da Central de Movimentos Populares e Fundadora do Centro de Promoção e Resgate a Cidadania do Grajaú (CEPROCIG).

Ela diz ainda que já não é mais possível que mulheres negras fiquem invisíveis na história desse país.

“A história da mulher negra precisa ser contada na escola porque somos nós quem transformamos dor em estímulo para a luta no enfrentamento ao machismo que nos afronta a cada dia. Não podemos mais ficar apavoradas quando nossos filhos saem e demoram a voltar pra casa. Essa marcha coloca tudo isso em reflexão. Mas ao mesmo tempo é também uma celebração à nossa coragem. Somos Legados de Zumbi”, conclui Nani Cruz.

Recém saída do ensino médio em 2015, quando a I Marcha aconteceu, Laís Guimarães conta que naquele período o foco da sua vida era trabalhar para colocar comida em casa e não poderia participar. Trabalhando no centro de São Paulo, sua rotina girava em torno do caminho de ida e volta do trabalho.

“Participando da Marcha de Mulheres Negras, na atualidade, consigo perceber que há muitas mulheres dedicadas à luta. Mas, nós mulheres da periferia, ainda estamos muito distantes das discussões que acontecem no centro. É preciso que os movimentos se aproximem mais dos extremos. Precisamos pensar como ampliar e partilhar conhecimento”, diz.

Para Nani e Laís, a troca intergeracional que a II Marcha proporcionou traz crescimento e aprendizados.

“A participação das jovens nessa Marcha é fundamental. A relação entre as mulheres experientes é importante para passar às mais jovens a responsabilidade em serem herdeiras do legado de luta. Essa luta precisa se manter viva. Precisamos carregar o orgulho de sermos o povo que construiu esse país”, diz Nani.

Foto: Fran Silva

Já Laís entende como fundamental essa conexão com as mais velhas. “Me inscrevi em alguns editais e por conta disso estava em Paraty. Foi por estar lá que consegui vir para a Marcha. Vim acompanhar uma mais velha, Dona Augustinha que é uma referência em Paraty. Ela é enfermeira, mãe de uma mulher artista e foi muito importante para mim estar com uma mais velha. Ter uma experiência diferente de tempo, vivenciar com ela as 20 horas de viagem foi mágico”, conta .

Ambas, Nani e Laís, têm em comum muito mais que o bairro que as une. A experiência na II Marcha de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver as tirou da periferia e as colocou no centro nervoso das decisões do país. As une também a esperança de que após uma experiência política tão potente, a periferia também esteja no centro dos debates.

A II Marcha das Mulheres Negras foi organizada pelo comitê Nacional formado por 12 instituições nacionais, sendo elas a Articulação Nacional de Psicólogas/os Negros/as e Pesquisadoras/es em Relações Étnico-Raciais (ANPSINEP), Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Candaces – Rede Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais Feministas Negras, Coordenação de Entidades Negras (CONEN), Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), Fórum Nacional de Mulheres Negras, Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS), Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (FONSAPOTMA), Movimento Negro Unificado (MNU), Mulheres de Terreiro – Delegadas no III Egbé Rede de Mulheres Negras do Nordeste, Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira, Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência.

*Matamba é um Inkice, divindade do panteão banto cultuada nos candomblés de Angola e associada aos ventos e à tempestade. 
**Hongorô é um Inkice, divindade do panteão banto cultuada nos candomblés de Angola e associada ao arco-íris e à serpente.
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