Com dor da covid e da violência, Cemitério São Luiz vira símbolo de luta por direitos nas periferias

Com dor da covid e da violência, Cemitério São Luiz vira símbolo de luta por direitos nas periferias

Contra fome, tiro e abandono, Caminhada pela Vida e pela Paz em cemitério da periferia de SP elabora luto coletivo e convoca à luta

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Reportagem de Thiago Borges (texto) e Vitori Jumapili (fotos)

Já choveu e o céu continua nublado. Condições muito comuns para qualquer 2 de novembro. Na manhã do Dia de Finados deste ano, a terra ainda tava úmida no Cemitério São Luiz, periferia da zona Sul de São Paulo. Ricardo Sousa, 22 anos, ajeita uma rosa e limpa uma capelinha de cimento à frente do túmulo de Henrique Miguel, amigo de infância com quem se criou como irmão.

“Ele morreu por consequência da vida. Tomou 2 tiros de 2 seguranças”, explica Ricardo, que mora na Vila da Paz (região de Interlagos) e vira e mexe está por aqui para rezar pelo parceiro. “A data tem o significado da gente lembrar das pessoas. E dele, eu senti mesmo a perda”, continua.

Ricardo Sousa, 22, em frente ao túmulo do amigo Henrique Miguel (foto: Vitori Jumapili)

O amigo de Ricardo foi enterrado em um terreno do cemitério que, até ano passado, era tudo mato. Muitos túmulos precisaram ser criados por conta das vítimas da covid-19. E há covas já abertos, esperando por novos sepultamentos – que em casos de infecção por coronavírus ainda precisam ser feitos em ritmo veloz, sem tempo para a despedida adequada.

“Você não pode ver, não pode velar, nem uma roupa pode colocar na pessoa”, explica Marta Corá, 48. Em abril, ela perdeu um irmão de 44 para a doença. “Talvez essa doença tenha vindo pra mostrar que precisamos ser mais humanos”, continua.

Magna (esq.) e Anderson (centro) acompanham Marta Corá (dir.) (Foto: Vitori Jumapili)

Apesar de ter muitas pessoas conhecidas enterradas aqui, dessa vez Marta não veio para visitar ninguém, mas para uma manifestação. Acompanhada do marido Anderson Corá, 44, e da irmã Magna Vaz, 46, ela segura uma cruz branca com fitas amarradas. Cada fita traz nomes de várias pessoas que já morreram e foram penduradas por quem frequenta a paróquia católica de Marta no Parque Santo Antônio, bairro aqui perto. “A gente vem rezar e sabe que não terminou aqui. Sentimos saudades”, observa Marta.

Essas saudades viram ação concreta. Às 10h da manhã, Marta levanta sua cruz e caminha. É uma das 26 pessoas a ingressarem cada uma delas com o objeto de madeira em um gramado no meio do cemitério. Elas vieram de bairros como Herculano, Kagohara, Jardim das Flores, Nakamura… Isso porque, há 26 anos, movimentos sociais, organizações e coletivos da região do Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo realizam a Caminhada pela Vida e pela Paz.

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Articulada pelo Fórum em Defesa da Vida, a atividade teve início em 1996 para denunciar a violência que fazia milhares de vítimas na região e cobrar políticas públicas dos governos. Com a pandemia, as edições de 2020 e 2021 não contaram com o trajeto e tiveram apenas atos reduzidos no cemitério. O São Luiz já foi e continua sendo destino de muitas, muitos e muites jovens que morrem por tiro, de mulheres vítimas do feminicídio e, recentemente, para quem sucumbiu à covid-19.

Luto coletivo

“A resistência e elaboração coletiva de nossas perdas e dores são processos importantes que nos retroalimentam. Mas a pandemia nos impediu de ritualizar nosso luto”, explica a assistente social Regina Paixão, articuladora do Fórum em Defesa da Vida. “Esse luto individual e coletivo nos convidam a falar sobre essa dor”.

Com cantos, falas e manifestações, o ato interreligioso reuniu algumas dezenas de pessoas e foi transmitido pela internet para chegar a outras tantas. O lema deste ano é “Nem fome, nem tiro, nem abandono. Saúde e democracia já!”.

“Graças a Deus, sobrevivemos. E estamos aqui pra agradecer pela vida que tem nos dado, pela vida que estamos vivendo e lutando”, diz a pastora Ivone Santana Fernandes, da Igreja Apostólica Brasil África, que trabalha com imigrantes no Parque Regina (zona Sul).

O monge budista Ryozan Sensei, do templo Zulai, reforçou que é importante honrar quem se foi – e não banalizar a morte, como tem sido comum sob o governo de Jair Bolsonaro. “Todo mundo vai morrer, mas nenhuma morte pode ser antecipada. Nenhuma morte pode ser por descuido”, nota.

Como acontece todo ano, o Fórum em Defesa da Vida elaborou uma carta a ser entregue a representantes do poder público. A vereadora Juliana Cardoso (PT) e a co-vereadora Paula Nunes, da Bancada Feminista (PSOL), receberam o documento que será encaminhado a outros órgãos. Nesta edição, a carta defende uma “Cesta Básica da Cidadania”, com garantia a segurança cidadã, cultura e educação, saúde, moradia digna e renda mínima para a população das periferias.

Para o padre aposentado Nicolau Bakker, é preciso agir. “Nosso País todinho se parece um pouco com um cemitério. Aos poucos, direitos conquistados por décadas de luta, inclusive por esse Fórum, estão sendo tirados, esquecidos”, analisa. “Todos nós temos que ressuscitar e começar uma nova vida. A vida eterna não é depois da morte. Ela começa aqui”.

A lembrança de quem partiu segue viva entre quem fica – e a Caminhada pela Vida e pela Paz convoca à luta.

Confira fotos do ato:

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1 Comentário

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