Quilombolas doam comida para favelas na luta contra a fome e a covid-19

Quilombolas doam comida para favelas na luta contra a fome e a covid-19

Comunidades localizadas no Vale do Ribeira abasteceram a mesa do Jardim São Remo e outras quebradas de São Paulo

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Do Instituto Socioambiental. Foto em destaque: Manoela Meyer

Mais internações, menos vagas de UTI, mais mortes por Covid-19. Dia 26 de fevereiro de 2021 e a Grande São Paulo regredia mais uma vez para a Fase Laranja do Plano SP, do governo estadual, que limita o funcionamento de serviços não essenciais. Era o início do mais grave período da pandemia até então.

Às 7h, o caminhão da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) encostava em frente à Associação de Moradores do Jardim São Remo, favela na zona oeste de São Paulo. E criava-se ali uma conexão das mais improváveis e urgentes: comida orgânica dos quilombos na periferia da maior cidade do país.

Caixas de palmito, caixas de banana, caixas de maná-cubiu, caixas de abacate, caixas de limão cravo, caixas de jaca mole, caixas de mel, levas de peixe seco, levas de banana chips, caixas de rapadura, caixas de abóbora, caixas de batata doce (com 3 variedades) e caixas de mandioca e mais caixas foram passadas de mão em mão.

O papo no grupo de mulheres voluntárias da associação de moradores era adivinhar quais eram as novidades da roça dos quilombolas, tamanha a diversidade de produtos.

“Esse aí teve gente que achava que era caqui. Mas é azedo, é o tal do cubiu”, e gargalhavam. “E isso aqui é batata doce ou mandioquinha? É da branca, da vermelha, vem de tudo quanto é jeito…”, diziam, enquanto as caixas deslizavam de um lado para o outro, fazendo labirinto no meio do salão.

Ao todo, eram 11 toneladas de alimentos quilombolas que, segundo os voluntários da associação, devem ajudar a alimentar cerca de mil famílias no mês. Ainda é pouco.

Pesquisa realizada em fevereiro pelo Instituto Data Favela em parceria com a Locomotiva – Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (Cufa) mostra um cenário alarmante. Oito em cada dez moradores de favelas disseram precisar de doações para sobreviver.

O auxílio emergencial retornou com valor médio deve de R$ 250.

“Hoje, infelizmente, depois que o pessoal voltou a trabalhar, houve essa falsa impressão de que a pandemia acabou. Mas não acabou”, disse Catarina Godói, cozinheira e voluntária da associação de moradores. “A quantidade de lojas fechadas, postos de trabalho fechados, é enorme. Gritante. Hoje as pessoas estão precisando muito mais do que no início, quando ocorreu aquele choque”, afirmou.

Maria da Conceição Mendes dos Santos Oliveira, 64 anos, grupo de risco para covid-19, com dificuldades para caminhar e carregar peso, não poderia buscar a comida na sede da associação. Mas recebeu na porta de casa, entrega feita por seu sobrinho Lula Santos, professor e liderança comunitária.

“Um tempo atrás eu falei para o meu sobrinho dar uma olhada na geladeira. Aí ele olhou. Sabe o que eu tinha? Água. Só água. Eu não consigo comprar. A banana, por exemplo, é muito importante. Tem cálcio, potássio, é importante…”, afirmou. “Abóbora, banana, é coisa que só faz muito bem. Tudo que vem é bem-vindo. Tudo é muito importante para nossa saúde. Abençoadas sejam essas pessoas que nos ajudam.”

No percurso, a resistência

Antes de chegar ao Jardim São Remo para distribuir as 11 toneladas de alimentos, o caminhão da Cooperquivale passou de comunidade em comunidade, onde há séculos quilombolas produzem alimentos com a floresta em pé.

Não tem coincidência. As comunidades são detentoras do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil. É por isso que o Vale do Ribeira (SP) concentra o maior maciço remanescente de Mata Atlântica do Brasil.

Para os alimentos chegarem no Jardim São Remo na sexta-feira, 26 de fevereiro, o caminhão começou a rodar nas comunidades quatro dias antes. Saiu da sede da cooperativa em Eldorado (SP) e parou, entre outras etapas, pela casa de Adan Pereira, no Quilombo Sapatu, para pegar caixas de bananas e levar à climatizadora.

Nos dias seguintes, fez visita à casa de Osvaldo dos Santos, no Quilombo Porto Velho, para recolher farinha de mandioca, mel, rapadura e taiada. Puxou ainda a mandioca colhida em mutirão no Quilombo Cangume, e carregou o inhame colhido na roça de Rosana de Almeida, do Quilombo Nhunguara.

Logística puxada por Michel Guzanchi, do quilombo Poça, hoje coordenador da cooperativa, familiarizado com o trajeto lento pela SP-165, que liga Eldorado a Iporanga, Itaóca e Apiaí, estrada sinuosa que margeia o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, o Petar.

“Ao mesmo tempo que é cansativo, é gratificante, dá importância ao nosso trabalho. Depois subir para a favela em São Paulo, ver a outra realidade do pessoal lá, que também necessita dos produtos. Quando abre a porta do baú do caminhão, o povo já fica muito feliz: olha a jaca, olha o peixe, veio banana”, contou Guzanchi.

Organizar a produção quilombola, coletar os alimentos e distribuir em uma favela paulistana no meio de uma pandemia só é possível porque há união entre a cooperativa, as associações quilombolas, organizações não-governamentais, organizações internacionais e lideranças comunitárias.

Há anos, a cooperativa entregava seus alimentos para a merenda escolar via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Ministério da Educação. Em março do ano passado, início da pandemia, as prefeituras de São Paulo, Santos, Santo André e Cajati suspenderam os contratos com a cooperativa. Até o momento, não há perspectiva de retomada das entregas contratadas e o arranjo precisou mudar de uma hora para outra, sem qualquer incentivo dos governos federal, estadual ou municipal.

“Nas primeiras distribuições foram mais de 20 toneladas”, lembrou Guzanchi. “Na primeira, na hora que chegou tudo aqui no galpão, ficamos surpresos. Nós mesmos da cooperativa não tínhamos noção que tínhamos essa capacidade. Foi bem assustador, porque fizemos sem saber se ia dar certo. E conseguimos.”

Este movimento produtivo e positivo, que busca amenizar tanto o impacto econômico como sanitário da pandemia da Covid-19, logo se provou um jogo de ganha-ganha. Por um lado, a geração de renda para os produtores foi mantida durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. Eles produzem o alimento que consomem e negociam o excedente com a cooperativa quilombola. Ganham, ainda, um sopro de autoestima.

Como resultado do trabalho, a cooperativa se fortalece, suas lideranças vão de quilombo em quilombo, ouvem as demandas de produtoras e produtores.

Caminhão da cooperativa chega ao Quilombo Porto Velho, em Itaóca (SP) (Foto Manoela Meyer/ISA)

“Nós percorremos em torno de 10 comunidades, ao longo de três dias e uns 500 quilômetros, fazendo essa coleta nas comunidades, até chegar na cooperativa”, disse Guzanchi. “Eu gosto de chegar, conversar e saber a necessidade de cada comunidade”.

Na última semana de fevereiro, o assunto nos quilombos do Vale do Ribeira era a vacina contra a Covid-19. Apesar de falhas e gargalos que motivaram uma ação no Supremo Tribunal Federal, muitas comunidades haviam recebido a primeira dose, conquista do movimento quilombola estadual, que atua junto ao governo paulista desde o ano passado para garantir a prioridade na imunização. Por isso, a esperança estava em alta, assim como o esforço de manter a distribuição de comida para famílias vulneráveis.

Além da favela São Remo, a roça quilombola e a pesca caiçara – as cestas também contam com peixe seco da Associação de Moradores da Enseada da Baleia, da Ilha do Cardoso, em Cananéia (SP) – ajudaram a alimentar moradores dos municípios paulistas de Eldorado, Iporanga, Jandira e Embu das Artes. Além de uma ação na Vila Brasilândia, favela da zona norte da capital paulista, que contou com apoio do Magazine Luiza e do Instituto Brasil a Gosto.

Ao todo, desde março do ano passado, foram realizadas oito entregas que somaram mais de 150 toneladas de produtos da roça quilombola e da pesca caiçara.

Do Quilombo Sapatu, os frutos

O motor de rabeta batuca e o barco atravessa lentamente o rio Ribeira do Iguape, altura do quilombo Sapatu, entre pedrais que se escondem no escorrer barrento. No horizonte mais distante, o topo da Caverna do Diabo, ponto turístico da região.

Quem pilota é Adan Rodrigo Trolesi Pereira, 32, que risca do mapa o que antes era disputado por grileiros e hoje, território quilombola, é base de trabalho firmada, dois anos de manejo de um bananal orgânico de dois hectares.

Adan Pereira trabalha com bananas orgânicas no quilombo Sapatu (Foto Manoela Meyer/ISA)

“A gente tem a sabedoria dos velhos”, disse Pereira. “Não exige demais do solo porque o que você dá, ele devolve.”

A alegria, ele contou, é plantar onde o pai plantou. Onde os avós plantaram. Onde os bisavós plantaram e reverenciar que ali mesmo, no meio daquele bananal novo, tem uma jacataúva, árvore de porte grande, que ninguém derruba por nada.

De ferramenta na mão, Pereira caminha por entre as bananeiras, escolhe o cacho. Remove as pontinhas com as inflorescências – para não machucar os frutos no transporte – depois despenca e limpa na tina com detergente, onde flutuam os besouros que denunciam que ali veneno não tem.

“Aqui você tem um consórcio. Tem a lavoura, mas tem a floresta junto. Então não está tudo desmatado. Você não está assoreando o rio. Você mantém as árvores mestres antigas, e embaixo você limpa e planta. Todas as nossas nascentes são preservadas, tanto o ribeirão quanto o rio. Tem nascente que nunca nem viu uma foice”, comemorou Pereira.

“Aí tá o diferencial da comunidade tradicional de uma fazenda. Lá planta banana e o que crescer diferente o cara joga veneno em cima”, continuou.

Os cachos, de motor de rabeta, então vão para a outra margem do Ribeira do Iguape. Depois, para a margem da SP-165. E para o caminhão, que chegaria na favela Jardim São Remo dias depois.

Do Quilombo Nhunguara, as raízes

O mar de folhas de inhame balança e, entre elas, Rosana de Almeida desbasta com o facão, puxa com o enxadão, e as raízes deixam a terra para trás. É manhã de trabalho em um morro alto do Quilombo Nhunguara, na roça que fica nos fundos da casa com vista para a floresta, na sombra da árvore de seriguela.

Antes, nas boas-vindas, o quintal é uma diversão de limão rosa, laranja, goiaba, nêspera, pupunha, abóbora, ata, tomate, mamão e isso tudo num piscar de olhos. Na caminhada, cesto nas costas, o riacho passa com água refrescando o sol duro.

Rosana divide o tempo entre a roça e a cooperativa, mas diz gostar mesmo da roça, que é quando desliga o celular (Foto Roberta Almeida/ISA)


“Essa aqui é uma área que eu trabalho”, diz Almeida, que não importa para onde aponte tem fruta, tem legume, tem hortaliça, tem roça e tem floresta. “Na terra, se a gente plantar, é difícil para a pessoa passar fome, né? Aqui é onde nasci, me criei e criei os sete filhos que tenho.”

Sempre foi assim até que, com o início da pandemia, as coisas mudaram drasticamente. Almeida passou a cuidar também da execução dos planos emergenciais da cooperativa, a mobilizar os produtores de mais de 10 comunidades. Por isso, o aplicativo de troca de mensagens não para de apitar.

“Se a gente não tivesse a cooperativa, não poderia nem vender os produtos. Antes, o que a gente plantava, a gente plantava, o que a gente comia a gente comia e o resto, como se diz, ficava para a terra. Hoje, não. A gente planta porque sabe que vai vender”, contou.

Do Quilombo Cangume, a união

Depois da sede do município de Itaóca, na estrada o que se vê é uma ilha verde cravada de casas: Quilombo Cangume. No entorno, pasto, pinus, eucalipto. No Cangume, não.

Fernando Gonçalves da Silva, Eurico de Oliveira, Esequiel Gonçalves de Pontes, Joel Dias Gonçalves, Pedro Henrique Santos de Pontes e a égua Mimosa trabalham sob o sol do fim da tarde para arrancar as mandiocas. É mutirão, é puxirão, é reunida, é troca de dia – trabalho colaborativo para animar o esforço. No Cangume e nos outros quilombos do Vale do Ribeira, todo mundo se ajuda.

“Não tem palavra que expressa essa terra maravilhosa que temos aqui. É gratificante demais saber que você está colocando na mesa um produto que você mesmo produziu, com suas próprias mãos, trabalho suado e você sabe do que está se alimentando”, disse Fernando Gonçalves da Silva, dos mais jovens e orgulhosos do grupo.

A mandioca, ele vai no detalhe sobre como se faz o plantio e a colheita. “Quando está com uns 30 cm a gente limpa ela, aterra. Com uns 60cm damos outra limpa. A partir de uns 6 a 8 meses ela começa a surgir a mandioca bem fininha”, explicou. “A partir dos oito já dá para usar para fazer cozido, sopa. Com um ano tá com esse padrão aqui. Essa tá com 1 e dois meses, aí tiramos para consumo.”

O transporte da mandioca, do morro íngreme até o barracão comunitário, é no lombo da Mimosa. Uma moto ajuda no leva e traz. Os espíritos vão felizes. O caminhão da cooperativa chega cedo no dia seguinte para buscar.

Do Quilombo Porto Velho, a luta de todas e todos

Trabalhar na comunidade, disse Osvaldo dos Santos, do Quilombo Porto Velho, tem sabor de liberdade.

Disse na casa com forno de farinha e uma estrutura recém-construída para trabalhar os derivados da cana-de-açúcar. Dali saem farinha de mandioca, rapadura e taiada – uma combinação dos dois primeiros com gengibre, que dá força ao trabalho na roça.

Força que ele quer transmitir para todos que vão receber os produtos. “A luta do pessoal da favela é a luta do negro no Brasil. A dificuldade, a discriminação, o preconceito”, afirmou Santos.

Ele continuou: “Isso é uma lógica que a gente enfrenta no dia-a-dia. E não é um dia, são quinhentos anos. Onde o negro tem que ir para a favela, onde o negro quilombola continua nas suas comunidades mas com muito sacrificio. Esse é o ponto em que estamos falando a mesma língua, na mesma sintonia.”

Por isso, caminhar com ele pelo território é celebrar cada pedaço de chão, da área reflorestada, da cana, do arroz, da mandioca. “Para mim é uma satisfação saber que estamos alimentando lá também, nessa sintonia de povo negro”, afirmou.

Quando o caminhão da cooperativa chegou, os produtos já estavam prontos, em caixas, na sala de casa. “Acabou a política pública da merenda, então agora estamos entregando no plano emergencial. É o que tem nos mantido até agora. Mas estamos precisando de política pública urgentemente”, afirmou.

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