Nudes vazados nas redes: uma questão de gênero que é anterior à internet

Nudes vazados nas redes: uma questão de gênero que é anterior à internet

A disseminação de fotos íntimas sem consentimento é prática antiga de uma cultura machista

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Por Amélia Rodrigues, estudante de Jornalismo na UNIP

Júlia* tinha 15 anos quando seu ex-namorado hackeou suas redes sociais e publicou suas fotos íntimas com o número de telefone na internet. “Foi um escândalo! Minha família, amigos, todo mundo viu!”, diz ela, que recebeu muitos xingamentos.

“Eu enviei as fotos num momento de bobeira para o meu namorado na época, em um aplicativo que prometia não permitir o print. A partir daí, sempre que ele queria que eu fizesse algo me ameaçava com as fotos”, relembra. Julia conta que, quando decidiu terminar o relacionamento abusivo, o rapaz disse que cometeria suicídio, arrombou sua casa e, quando percebeu que ela não voltaria atrás em sua decisão, ameaçou com as fotos novamente. “Confesso que achei que ele não faria”, continua.

Karla* também tinha 15 anos quando descobriu que o vazamento de uma foto íntima que enviou para o garoto que gostava e tinha um relacionamento afetivo. Ele compartilhou a foto entre amigos, um deles mostrou o print para Karla e ameaçou espalhar a imagem. “Não me reprimi porque eu realmente gostava da foto, mas fiquei deprimida. Eu tinha medo dele vazar as fotos”, observa.

A internet foi inventada em 1969 no contexto da Guerra Fria, popularizou-se na década de 1990 e, nos anos 2000, as redes sociais se difundiram mundo afora. Hoje, é essencial em nosso dia a dia, ultrapassando o limite do on-line e interferindo diretamente em nossas vidas off-line. Se uma publicação viral é o necessário para tornar alguém famoso na internet, essa mesma publicação viral é o necessário para destruir a reputação de alguém, on-line e off-line.

foto: Carolina Teixeira

No Brasil têm se tornado recorrente os casos de divulgação não consensual de imagens íntimas. São inúmeros os casos de mulheres e meninas que tiveram imagens íntimas ou vídeos feitos em momentos íntimos divulgados online sem o seu consentimento.

De acordo com a advogada especializada em direito digital, Isabela Guimarães Del Monde, geralmente quem comete o crime é o ex-companheiro ou o rapaz que se relacionou uma vez com a mulher, tirou foto e está divulgando.

É necessário ter em mente que o consentimento na produção da imagem e o compartilhamento dela entre duas pessoas não autoriza a divulgação desse material a terceiros. Expor a intimidade de uma pessoa é crime previsto no Código Penal, e pode ter pena aumentada se quem comete a violência manteve ou mantém relações afetivas com a vítima, ou se houver o intuito de vingança e/ou humilhação.

Cultura machista

Ao contrário do que podemos facilmente acreditar a divulgação não consensual de imagens íntimas não nasceu a partir da internet. A pesquisadora do Internetlab, Natália Neris, explica que na década de 1960 e 1970 era comum que as pessoas mandassem fotos amadoras sem consentimento para as revistas. “Esse tipo de exposição da intimidade de mulheres, de constranger, se adapta com as novas tecnologias, mas de fato ela sempre existiu”, conclui a pesquisadora.

A primeira edição da Revista Playboy, de 1953, continha fotos íntimas da atriz Marilyn Monroe reproduzidas pela publicação sem o consentimento da atriz. Essa exposição da intimidade de uma mulher com fins de vingança ou humilhação é uma violência que está inteiramente ligada ao machismo enraizado na sociedade.

Natália Neris

“Geralmente nos vídeos vazados são casais, mas o homem não vê problema em ser exposto porque tem essa coisa de reafirmar a masculinidade. Para a mulher, não. Traz toda a estima de que está quebrando regras e não deveria estar fazendo isso”, afirma Natália Neris.

Com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, essas práticas se reproduzem. “A Carolina Dieckmann tem várias fotos de ensaios sensuais na internet. Por que a foto vazada fez mais sucesso? Porque dizia da intimidade dela”, questiona Elânia Francisca, psicóloga especialista em gênero e sexualidade.

A vítima passa a se sentir culpada pela violência que sofreu, acredita que não deveria exercer a sua sexualidade. E reforçando essa culpa que ela sente estão os comentários nas redes sociais, os xingamentos que recebe pelas ruas, a família que julga, os amigos que se afastam, a sociedade que a aponta e exclui. “A misoginia faz com que, a priori, a gente sempre coloque a culpa na mulher”, explica a psicóloga.

Essa divulgação de fotos vem da necessidade do homem de ser validado por outro. “Tanto que se outro homem vier e falar ‘vacilo o que você fez’, ele vai dizer ‘é mesmo né!? Deixa eu apagar isso aqui’”, exemplifica Elânia.

Campanha em 2017 alertava para prática do TOP 10 em escolas do Extremo Sul de São Paulo

Outro exemplo dessa disseminação cada vez mais precoce é o Top 10 do Whatsapp, que a Periferia em Movimento noticia desde 2015. Essa prática consiste em vídeos feitos por adolescentes que elegiam as 10 meninas mais “safadas” de bairros e escolas das periferias de São Paulo. Os vídeos não necessariamente continham nudez, mas traziam fotos de perfil de redes sociais das meninas acompanhadas de legendas que expunham supostas práticas sexuais delas.

De acordo com a pesquisadora Natália Neris, o grande desafio do Top10 é que ele não é revenge nem porn, é um caso difamatório – a prática é conhecida como slut shaming – o que dificulta a retirada do conteúdo de plataformas.

O que fazer?

Os impactos desses episódios na vida da vítima são diversos. Algumas ressignificam a violência que sofreram e passam a ter mais autonomia. Outras sentem culpa, vergonha e nojo de si mesmas, podem desenvolver depressão, síndrome do pânico e persecutoriedade (sensação de que ser perseguido).

Elânia Francisca
Elânia Francisca

“O maior problema é que quando essas mulheres passam por isso, elas são submetidas à solidão”, observa Elânia, que aponta que a maioria das vítimas que buscam apoio na família e amigos não encontram. Ela relata que já viu meninas serem arrastadas pelos pais até a UBS ao lado da clínica para fazer um “teste de virgindade” após os pais descobrirem um nude e, por conta de reações assim, elas acabam não relatando a violência para ninguém. “As meninas na adolescência não procuram lugar nenhum, elas procuram morrer”, diz ela, referindo-se às 03 adolescentes do Extremo Sul de São Paulo que cometeram suicídio em 2015 após saírem no Top 10.

Algumas mulheres optam por levar os casos à Justiça, mas ainda são minoria. “A gente percebe que fazer isso é muito difícil. É repetir essa história muitas vezes para um delegado, um juiz, um advogado; é anexar provas e pendrives”, diz Natália Neris, explicando que a cada vez que precisa relatar novamente o ocorrido é como se a vítima fosse violentada mais uma vez.

Além disso, o tratamento desses casos em delegacias – no caso de registro de boletins de ocorrência – não é dos melhores. “As mulheres não se sentem a vontade de ir a um local cheio de homens. E na delegacia da mulher a gente costuma ser muito maltratada”, afirma Elânia.

“Minha mãe me levou à delegacia, onde a delegada me humilhou mais um pouco. E ficou por isso mesmo. Eu aguentei todos me julgando por muito tempo e ele só seguiu a vida dele”

Julia, que teve fotos íntimas vazadas na adolescência

Uma pesquisa da organização Internetlab, de 2016, fez uma análise de 90 decisões judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo de casos de exposição não consentida de imagens íntimas online. Entre as constatações da pesquisa podemos destacar que do total de decisões avaliadas, cerca de 18 envolviam menores de idade e a divulgação das imagens dificilmente era o único crime elencado – era acompanhada de ameaça, extorsão, ameaça de estupro e estupro.

À época da pesquisa, não existia legislação que enquadrasse a divulgação de imagens íntimas como crime, assim os processos tratavam o ato dentro dos crimes contra a honra (injúria e difamação). Essa situação mudou em 2018, quando essa prática foi tipificada como crime pelo Código Penal (Artigos 216 B e 218 C) e inclusa na descrição de violência psicológica na Lei Maria da Penha (Artigo 7, inciso II).

O artigo 216 B torna crime gravar cenas de nudez, ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem consentimento dos participantes e a produção de montagem para incluir uma pessoa em cena de nudez, ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo – incluído pela Lei no 13.772/2018.

Já o artigo 218 C torna crime oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender, distribuir ou divulgar por qualquer meio registro que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima. Também há aumento de 1/3 a 2/3 da pena se quem pratica o crime mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima, ou tenha praticado do crime com o fim de vingança ou humilhação – incluído pela Lei no 13.718/2018.

Tanto Julia quanto Karla, vítimas ouvidas para esta reportagem, relatam que depois do ocorrido não enviam mais nudes porque não confiam em mais ninguém. A recomendação das especialistas é que as vítimas busquem acolhimento com alguém de confiança para falar sobre esse problema.

Procurar apoio psicológico também é importante. É possível – e recomendável – buscar grupos de apoio sobre esse tema, para entender que não está sozinha e que há superação. Para levar o caso à Justiça, é imprescindível buscar orientação jurídica e ouvir o aconselhamento para saber o que pode dar errado e o que pode dar certo.

Busque amor, afeto e acolhimento. Você não está sozinha.

*As entrevistadas tiverem seus nomes alterados para preservar sua identidade

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