Forjado: Corrida com a cachorra, investimentos na Bolsa e outros sonhos interrompidos de um jovem negro da periferia

Forjado: Corrida com a cachorra, investimentos na Bolsa e outros sonhos interrompidos de um jovem negro da periferia

Há 30 dias, Gabriel Apolinário foi preso em flagrante pela PM no Jardim São Luís acusado de tráfico de drogas. A família luta pra provar sua inocência

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Fotos e reportagem de Julia Vitoria, especial para Periferia em Movimento. Texto e edição por Thiago Borges

“Fora! Você não vai aparecer na reportagem”, diz Danila Apolinário Gonçalves para Mel, uma cadela da raça golden retriever que se aproxima querendo atenção. “Ela é o xodó do Gabriel, tadinha”, continua, explicando à repórter da Periferia em Movimento que era o filho quem a levava para passear todos os dias.

Gabriel e a cachorra Mel (foto: arquivo pessoal)

Porém, há exatamente 30 dias, Mel não sai com o companheiro para dar um rolê na rua. Isso porque em 13 de julho de 2020, Gabriel Apolinário foi preso em flagrante pela Polícia Militar sob a acusação de tráfico de drogas. Desde então, ele segue detido enquanto a família batalha para provar sua inocência.

“Alegaram que ele traficava por estar desempregado. E isso não é verdade. Ele tem um cartão de crédito adicional nosso, no nome dele, pra ele ir lá e comprar o que quiser e o que precisar”, conta a mãe.

Sofreu violência estatal? A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio coleta denúncias anônimas. Clique aqui.

Gabriel completou 18 anos em junho. Desde os 14, trabalhava como jovem aprendiz. No momento, não conseguia emprego por conta do período de alistamento militar. Para não ficar sem dinheiro, Danila pagava uma mesada para ele dar um pião com os amigos e bancar as vontades comuns a qualquer jovem de sua idade.

Mas, mais que curtir, Gabriel tinha ambições para o futuro. Por isso, começou a aplicar parte da grana em ações na Bolsa de Valores. O fascínio pelo mercado de capitais, inclusive, afetou sua escolha acadêmica. Neste ano, ele cursou o primeiro semestre de Marketing na Universidade Paulista (UNIP) com bolsa de estudos de 70%, mas queria trocar para Economia no segundo semestre.

Danila apoiou a decisão, mas não deu tempo de fazer a transferência. “Nunca repetiu de ano. A gente ta aí com o apoio de todos os professores dele desde quando ele cursava o Ensino Fundamental até o Médio”, explica. “Ta todo mundo revoltado porque conhece ele e sabe a pessoa maravilhosa que ele é”.

A corrida e os obstáculos

No momento em que foi preso, Gabriel se preparava para correr. Além de sair com a cadela Mel, ele se encontrava com um amigo todos os dias para fazer exercícios. Ele já gostava de esportes desde que tinha trabalhado no Esporte Clube Pinheiros e iniciou a corrida incentivado pela mãe Danila, que tornou isso um hábito quando começou a trabalhar como consultora de vendas numa academia.

Danila Apolinário, mãe de Gabriel (foto Julia Vitoria)

Naquele 13 de julho, Danila estava reunida com a equipe do serviço para entender as normas de reabertura do espaço. O Governo do Estado de São Paulo flexibilizava o funcionamento das academias durante a pandemia. No meio da reunião, ela recebeu a ligação de uma tia do rapaz, largou o que estava fazendo e foi tentar entender a situação.

Gabriel estava em frente a um conjunto de prédios na região aguardando o parceiro de corrida, mas o amigo pegou no sono e se atrasou. Nesse meio tempo, 4 viaturas pararam e os policiais o abordaram e prenderam. “Eles alegam que pegaram o Gabriel e, como ele tava sem nada, pressionaram ele até levar num matagal onde tava uma bolsa com as drogas”, explica Danila.

Outro rapaz foi preso no momento e foi considerado “usuário”. Mas assim como Gabriel, também foi forjado. Para Danila, 2 fatores explicam a prisão. “Por meu filho ser preto e morar na periferia, é característica pra eles. É alvo fácil. Um absurdo, né (…) Ele é réu primário, ele tem residência fixa desde quando nasceu, os seus 18 anos no mesmo bairro, no mesmo local, tem os comprovantes de que faz faculdade…”.

No dia seguinte, Gabriel foi transferido para o Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, na zona leste da capital, aonde ficou por quase 20 dias. De lá, foi levado para o CDP de Osasco, na região metropolitana.

“Eu gostaria de saber com base no que o promotor Luis Guilherme Gomes dos Reis Sampaio Garcia alega que meu filho tem entrosamento e desenvoltura na prática do tráfico. Ele se baseou na sua bolsa de estudos de 70%, que ele conquistou na faculdade UNIP? Nos diplomas que ele tem do Senac? Na sua carteira de trabalho, que está registrada desde os 14 anos? Ele alega isso por quê? Porque meu filho é preto, porque moramos na periferia”, desabafa Danila.

Liberdade para Gabriel!

Com crises de ansiedade, que aceleram o coração e tiram o sono, o apetite e o ar, Danila se preocupa com as condições do filho no cárcere, a falta de notícias e o que tem se passado na cabeça dele. Em um bilhete que ele conseguiu enviar pelo advogado, sua preocupação é em afirmar sua inocência para a família. “Mãe, eu não tava traficando”, escreveu.

Diante do sentimento de impotência, Danila encontrou forças para gritar por justiça e buscar meios para isso, mesmo com medo de represálias – a família diz que a circulação de PMs é constante na região. “Eu não vou ficar chorando , eu não vou ficar me lamentando, eu vou lutar por ele pra mostrar que ele não é o que falam”, reforça.

No último sábado (08/08), familiares, amigos, vizinhos e movimentos sociais fizeram uma caminhada entre a praça do Jardim Letícia e a Fábrica de Cultura do São Luís. Os cartazes e faixas pediam a liberdade de Gabriel e denunciavam a política genocida do Estado. A manifestação foi acompanhada por carros e motos da Polícia Militar.

“Não tem do que reclamar. Ele é muito amoroso, carinhoso com todo mundo”, diz Gabrielly Siqueira, de 18 anos, ex-namorada de Gabriel e organizadora do ato. Ela também ajudou a mobilizar uma petição on-line, que já tem quase 14 mil assinaturas.

Clique aqui para assinar o abaixo-assinado

Rodrigo, pai de Gabriel (foto Julia Vitoria)

Rodrigo Ribeiro Soares, de 35 anos, vive um pesadelo. Nascido e criado no Jardim São Luís, o pai de Gabriel se surpreendeu com o tanto de casos parecidos ele se deparou após o flagrante forjado contra o filho.

“Não deveria ser, mas é normal, parece que é normal. Parece que isso acontece todo dia, toda hora, e que a gente deveria que se acostumar com isso”, lamenta, indignado.

O que conforta Rodrigo é notar o apoio e mobilização em torno do caso. “É bom ter essas pessoas boas ao nosso redor, [em saber] como o Gabriel está sendo visto hoje aqui na rua como uma pessoa muito boa”, diz, emocionado.

Morador da região, Romeu da Mata Santos, de 44 anos, se juntou ao ato pelos direitos de seus filhos e dos filhos de outras pessoas da comunidade. “Qualquer pessoa em sã consciência vai aderir ao movimento, porque ela tem que pensar: ‘E a família da pessoa? E se fosse com meu filho?’”, diz ele, antes de sair para comprar apitos para distribuir na manifestação.

Pamela, tia de Gabriel (foto Julia Vitoria)

“É injusto ele estar onde ele está. Eu fico muito emocionada porque a gente está lutando muito para que a justiça seja feita”, observa Pamela Ribeiro Soares, 36 anos, tia do Gabriel.

“É um menino que quer progredir, tanto é que ele pensa muito em se formar pra ser alguém. Mas é muito difícil… Ainda mais sendo negro”, lamenta a avó, que não quis se identificar. Todos os dias, Gabriel fazia compras para ela para prevenir o contágio de coronavírus.

Mobilização

O ato também foi acompanhado pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que reúne militantes de movimentos sociais e organizações espalhadas por diferentes periferias da Grande São Paulo para denunciar casos e apoiar famílias em busca de justiça.

“A grande maioria desses casos é violência policial contra a periferia. E a violência se dá em todos os âmbitos: seja na forja, no ato de prender ou no ato máximo, que é matando”, explica Mariana Janeiro, moradora de Jundiaí e articuladora do grupo.

Marcio Bhering, que mora na região e também é articulador da Rede, aponta a importância da denúncia para que mais casos venham à tona. “Inclusive, a partir do Gabriel, surgiram mais 2 casos”.

Um desses casos é o do rapaz que foi preso no mesmo momento que Gabriel e solto pouco depois. O outro é de D.F., preso no mesmo dia na Estrada do Alvarenga, próximo à divisa de Diadema. Ele dividiu cela com Gabriel na delegacia, passou na perícia no Instituto Médico Legal e foi no mesmo bonde para o CDP do Belém. Na detenção, o espaço que deveria comportar 12 presos tinha 30. D.F. dividiu cama, toalha, café e histórias com Gabriel.

“De todos os presos que estavam lá, ele era o que mais tinha o coração bom, que não tinha maldade, era humilde, conversava, ele não acreditava que estava lá dentro”.

O convívio durou até a transferência de Gabriel para Osasco. D.F. seria levado para Limeira, no interior do Estado, mas seu alvará de soltura saiu antes disso. Agora, ele luta pela liberdade do amigo que conheceu no sistema carcerário:

“Nós somos honestos, a gente não precisa disso. E eu tô agora com a família dele e vou fazer de tudo. A gente vai protestar, a gente vai correr atrás pra livrar ele e ele vai sair de cabeça erguida e com o pé no chão”.

foto Julia Vitoria)

A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio apoia mais atos neste fim de semana. No sábado (15/08), pedem a liberdade de Jonathas e Kaike, presos forjados pela PM. Saiba aqui. No mesmo dia, acontece um ato para marcar os 4 anos da chacina de Osasco, no Munhoz Júnior. E no domingo (16/08), ocorre uma manifestação por justiça e em luto pelos 2 meses de assassinato de Guilherme. Outras informações aqui.

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