Cabeça e Estômago: Cotidiano de pessoas em situação de rua

Cabeça e Estômago: Cotidiano de pessoas em situação de rua

Aos 51 anos, Gil Brasil enfrenta transfobia e outras discriminações na rua. Não teve renda emergencial e vive o isolamento social, mesmo sem casa. Ela é uma das entrevistadas nesta reportagem especial

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Entrevistas e transcrição: Jeniffer Gomes, Isabelle Raymundo, Luana Gonçalves e Leonardo Siqueira. Texto e edição por Leonardo Siqueira.

Cabeça

Tarde de segunda-feira, Dia dos Mortos no bairro da República. Um grupo de ciclistas pedala chacoalhando as braçadeiras enquanto viram o guidão de leve para não pegar na idosa que obstrui o caminho, no chão e coberta da canela a cabeça, que gira para acompanhar a velocidade das bicicletas. No outro lado da rua em frente ao mercado, um grupo guarda suas compras nas mochilas enquanto caminham em frente a um homem, uma mulher, um bebê e papelões. Mas sem perder o passo vão em direção à praça Roosevelt, e no caminho, ali na esquina entre a Martins Fontes e a Avenida São Luís, uma moradora de rua vende livros.

Gil Brasil cumprimenta a todos que passam em frente aos seus livros e agradece depois de começar um monólogo quando o cliente pergunta se é de graça.

Em São Paulo, o Censo da População em Situação de Rua de 2019 estimou que quase 25.000 pessoas estão sem um teto, e há 1.385 tetos ociosos, imóveis abandonados ou subutilizados segundo o Plano Municipal de Habitação. O ócio é o que se vende para a população paulistana sobre quem mora na rua. O desemprego é a imagem da negação ao trabalho. Na organização que estamos inseridos, ter um ofício é fazer parte da estrutura e do sistema identitário. Abdicar desse sistema deixa o cidadão mais distante do seu poder cívico, então após perder o posto o ser humano começa a se ver sem uma função social assim como diversos imóveis na cidade.

“Eu tinha um cartaz aqui, que me ajudava a disfarçar as condições né, de morador de rua, pra não dar tanta nó em goela. O pessoal acha que a gente é morador de rua, mas é vagabundo. Eu não tenho mais”

Gil Brasil, 51 anos, migrante do interior paulista

O Movimento Nacional sobre a População em Situação de Rua mostrou os principais motivos declarados pelas pessoas para que morassem nas ruas:’o desemprego, os conflitos familiares (50%) e o uso abusivo de álcool e outras drogas (33%).

A população em situação de rua dialoga com a sociedade para viver. Assim, os meios de exploração dessa superestrutura ficam evidentes em quem está mais vulnerável. O indivíduo é reprimido pela cultura dominante, pela sua condição social e psicológica. A desigualdade social tem forte impacto na formação de crianças e adolescentes.

“Eu cheguei em São Paulo com 11 anos fugindo do interior, perdi minha mãe com 8 anos por um câncer, muito religiosa, judia ortodoxa. Meu pai foi assassinado quando eu tinha 14 anos…”, diz Gil, que ajeita a máscara enquanto fala.

A maior cidade da América Latina se estrutura até o centro expandido e, para quem tem mais recursos e poder, a periferia paulistana é praticamente invisível pelo poder público. O êxodo rural (movimento de trabalhadores migrando para outro lugar para ter “melhores condições”) contribuiu para o grande crescimento irregular da cidade. Longe das zonas centrais, o crime organizado aparece reivindicando o poder ausente do estado, criando um grupo de influência para cada extremo de São Paulo.

Sentada em frente a Biblioteca Mário de Andrade, Gil conta quando fugiu da antiga Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor (FEBEM), hoje Fundação CASA. Conheceu um garoto que gostou, conta ela sorrindo. Tinha ele como uma companhia. Mais tarde, a mando de um preso do Carandiru, o garoto foi queimado vivo. “Ele tinha 16 anos e eu tinha quase 15”, conta.

Um dos motivos para a população de rua de São Paulo ficar próxima ao centro se deve ao fato de ter maior “visibilidade” e recursos do que nas áreas extremas. Mesmo o acolhimento sendo quase escasso, o ser humano tem maior chance de sobrevivência perto do marco zero da capital.

Da livraria sobre a pedra tem de Mario Vargas Llosa até livros sobre revoluções, encadernados sobre lógica a exemplares de aromaterapia. Um senhor secando os livros pergunta se ela não faz o exemplar por R$ 1. Gil responde que não e explica o motivo: “o mínimo é…”. Ele se vira e segue seu caminho em direção à Câmara Municipal.

“Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória” (Art.1º do Decreto Nº 7.053 de 23 de Dezembro de 2009).

O grupo sem moradia é um universo heterogêneo de histórias vindas de todo o Brasil que compartilham aspectos em comum, como a desigualdade. O brasileiro foi ensinado a tipificar esses grupos e ver a desigualdade como banal, a sobrevivência como ordinária, e a violência como normal.

Em 2020, a fragilidade dos conceitos neoliberais (que defendem a absoluta liberdade do mercado com pouca intervenção do estado) ficaram mais evidentes, não só pela influência na crise de 2008 nos Estados Unidos que atingiu o Brasil em meados de 2012, mas pela pandemia do coronavírus.

As alternativas políticas para a crise como a eleição do Jair Bolsonaro para a Presidência em 2018 mostram um afogamento da classe dominante no período. Essa classe possui um estado democrático de direito que é exclusivamente dela, enquanto as outras classes (dominadas) possuem um estado de exceção.

Em 2016, estudos da Oxfam mostraram que 1% da população mais rica do mundo possuía a mesma riqueza que 99% do restante. A parcela mais rica na atual organização é agente principal da causa da precariedade da situação de pessoas sem teto.

“Todos esses processos de construção do País em cima de dominação e violência são muito profundos. Acho que isso se reflete numa grande pobreza que a gente tem hoje no Brasil, e que está cada vez maior”

Beatriz Swenck, cientista social e doutoranda em Sociologia

A configuração atual de família e trabalho vieram de séculos de manutenção de um modo de vida exclusivo, opressor. A pessoa em situação de rua adota a ideia de culpabilização, que está naquela situação integralmente por escolhas que fez, que chegou aquele ponto por perder oportunidades, por não ter estudado, que é pobre por não ter usado a cabeça. O ser humano passa a se enxergar como insuficiente, e compra a ideia de ser alguém degenerado, se isola com humilhação e vergonha, se afastando dos laços familiares.

“A própria relação com o vício acaba ficando conveniente para que essa situação ocorra. Hoje para a sociedade é difícil viver com um dependente químico em casa. Isto é bastante relativo, já que alguns que foram rejeitados pela família. E tem a gravidez indesejada também”, diz Rafael Araújo, que morou na rua e hoje tem uma residência em São Mateus.

A sociedade brasileira é estruturada por laços familiares trágicos. A colonização europeia subjugou qualquer outra etnia que não fosse à própria, violentando e assassinando Tupis-guaranis, Aruaques, Caraíbas, e no que hoje seriam Luandenses (Angolanos), Beninenses, Quelimanenses (Moçambicanos) e outros.

O projeto DNA do Brasil mostrou através de análises mitocondriais que 70% das mães que deram origem a população brasileira são africanas e indígenas, e 75% dos pais são europeus. A família brasileira surgiu de uma sociedade de estupros e violência. O País buscou embranquecer a população e, no século 20, qualquer relação com a cultura afro foi criminalizada.

Com Getúlio Vargas no poder o Brasil quis criar uma identidade nacional, tentando unir a cultura africana, europeia e americana, sustentado por Gilberto Freyre, que inaugurou a sociologia sobre a identidade brasileira. Casa Grande e Senzala (1933) mostra a relação euroafricana e deslegitima o caráter racista do Brasil, criando uma ideia branca de harmonia, utópica na sociedade brasileira.

Em 2019, o Censo da População Em Situação de rua mostrou que, 70% da população de rua era preta e 15% eram mulheres. Porém, 50% dos casos de violência contra a população de rua registrados foram contra mulheres.

O estado democrático de direito é seletivo, mulheres são desamparadas pela sociedade e pelo estado, suscetíveis à violência física e a injustiça, na justiça brasileira a maioria são homens e brancos.

“A mulher sem teto está mais vulnerável que um homem. Sem um lar para assegurá-la, ela está exposta a todo tipo de violência possível, a ajuda não é oferecida a elas da mesma forma que as pessoas com moradia em condições melhores de vida, sem documentos é mais difícil de se fazer um boletim de ocorrência e sua palavra tem menos credibilidade que de outras pessoas com casa. Assim, muitas desistem de ao menos fazer a ocorrência formal, impossibilitando a punição ao agressor. Em nossa sociedade já existe a ideia de fragilidade feminina. Como estas mulheres estão invisibilizadas, elas são alvos fáceis para agressores que por vezes são seus próprios companheiros”

Larissa Maria, acadêmica em Psicologia

Há diversas influências que contribuem a pessoa ir à rua, entre relacionamentos abusivos psicológicos e agressivos, falta de apoio, recursos com gravidez indesejada e preconceito familiar. Um reflexo da sociedade e de quem não abre mão do poder.

“A gente sabe também que quanto mais vulnerável maior a chance de uma mulher sofrer algum tipo de violência de gênero, violência sexual, enfim, então eu acho que é muito importante que a gente perceba essa parcela da população e que ela tem necessidades específicas, e entenda também a fragilidade das mulheres em outros contextos, de acesso à moradia, acesso à terra, acesso ao trabalho com uma remuneração decente, eu acho que é importante que se olhe pra isso”, diz Beatriz.

O dia vai indo embora devagar, o céu vai escurecendo e pelas ruas da capital as pessoas passam e começam os seus rolês sorridentes com uma garrafa na mão. A metros dali, uma família conversa com o pai segurando uma taça de vinho enquanto a criança brinca sobre a mesa, sentados a um restaurante em frente ao jardim da biblioteca Mário de Andrade. No barzinho, o músico acústico toca Rosa de Hiroshima e se ouve o dedilhado passando por um senhor que anda com a marmita na mão dançando até próximo à rua Augusta.

Gil está sentada e comenta sobre quando conheceu Paris, Espanha, Alemanha, conta sobre o muro de Berlim e começa a mostrar um livro em alemão, no qual lê com sotaque agressivo e típico. Viveu 26 anos na Europa após ter sido contrabandeada em uma operação de tráfico humano aos 18 anos.

Antes, foi pega por um dos carros da polícia com cores preto e vermelho, e mais tarde fugiu da FEBEM perdendo muito sangue. Conseguiu sobreviver. “Já vi situações na própria FEBEM onde menores eram assassinatos dentro da instituição e os corpos eram jogados pra fora “.

Além das viagens, tem outra paixão que é a literatura, ganhou livros e aos poucos foi revendendo, com vezes dividindo o lucro com alguns estabelecimentos doadores.

Gil é uma mulher trans no País onde mais ocorre assassinatos contra transexuais, segundo a ONG Transgender Europe. E 90% da população trans já recorreu à prostituição em algum momento da sua vida, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O grupo é marginalizado e quase não possui oportunidades.

“Muitas famílias abandonam seus filhos e parentes LGBTQIAP+ por vergonha e por preconceito. Essas pessoas acabam vivendo em abrigos ou até nas ruas. É preciso um trabalho continuou de desconstrução desses preconceitos para que essas pessoas possam se sentir mais confortáveis em seus próprios corpos, para que haja mais aceitação dentro do seio familiar e no mercado de trabalho”, conta Larissa Maria, que além da Psicologia, é ativista no movimento Anjos da Noite em Arthur Alvim.

O “Estado de Respeito” não acolhe tão bem e nem com o mesmo respeito os imigrantes e refugiados vindos de países como o Haiti, a Bolívia e a Venezuela. Muitos são encontrados em situação informal e sem moradia. Pela burocracia do Estado para se tirar documentos, essas pessoas ficam dias, meses e anos em situação precária. Participam de movimentos de ocupação e tentam de alguma forma se inserir no ambiente de trabalho.

“A xenofobia é um grande fator para o desemprego de refugiados e imigrantes, pessoas de países de terceiro mundo sofrem com o preconceito quando migram para outros países, e no Brasil não é diferente. Sul-americanos e africanos migram para grandes cidades brasileiras em busca de uma vida melhor e encontram, muitas vezes, preconceito e desemprego. Com pouca experiência no mercado de trabalho e pouco formação acadêmica, esses refugiados encontram pouquíssimas possibilidades de emprego e acabam gerando pouquíssima renda, mal conseguindo se sustentar; junto do preconceito, às vezes até mesmo com a dificuldade de encontrar um imóvel e podendo ficar desabrigados”, continua a psicóloga em formação.

O psicológico da pessoa em situação de rua é afetado por inúmeros fatores sociais, temporais e culturais que contribuem como barreiras para o seu desenvolvimento pessoal.

Estômago

Andando só com uma coberta no ombro, Júnior vem com uma feição de dor e caminha lento, com passos pesados. Ele chega a dizer que sua barriga está doendo muito. O frio deixou o corpo fraco então ele buscou remédios para melhorar de alguma forma. Nos seus 46 anos se enxerga em sobrevivência “Se você pegar uma doença ninguém vai te ajudar não”, diz, como se o cidadão o visse como um criminoso em potencial.

Júnior fala sobre o quão grande é a escolha que se faz quando mora na rua, e que cada movimento pode significar a sua vida. “Eu tava com fome! Preferi comprar o remédio que a comida que eu queria”, explica o potiguar, que veio de carona para o Sudeste pulando de uma cidade pela outra e está há 15 anos no centro de São Paulo. “Vou pra onde? Aqui que é bom, aqui que é o movimento”.

Ele conta que é melhor ser pedinte que fazer coisa errada, mesmo assim tem que ouvir algo como “vai procurar o que fazer!”. E completa “É uma humilhação da… a pessoa que mora em rua é discriminada!”.

Na gestão do ex-prefeito João Doria, a Prefeitura passou a tirar os pertences de moradores de rua.

“Não pode, mas eles tiram. Não sei nessa nova gestão, mas na época do Doria ele mandava, os caras perdiam documentos a rodo, porque não dava tempo deles levantarem e pegar as coisas. Assim, o que eles não podem fazer é casa na calçada, tipo sofá, guarda-roupa, não pode. Então, se passar e levar, ok, vai levar porque não pode, mas pertences como documentos, roupas, produtos de higiene, a gente já viu muitas vezes levando sem dó – e isso não pode, mas infelizmente fazem”

Natália, antiga orientadora do SEAS (Serviço Especializado de Abordagem Social) serviço terceirizado pela Prefeitura

A Prefeitura pouco fez para a integração dessa comunidade de volta ao âmbito social. Em 2017, depois da madrugada mais fria do ano, moradores da Sé são acordados com jatos de água fria.

“Aconteceu sim algumas vezes e a gente não tinha o que fazer. Eles jogavam mesmo, foi totalmente desumano, totalmente sem noção, mas jogavam. A gente ficava muito brava, né?! Porque isso é muito errado, porque eles estavam dormindo. Se os caras chegassem neles e falasse ‘olha, você pode se levantar aqui para gente lavar por favor’, eles iam levantar. Mas não fizeram isso, chegaram jogando água. Sem palavras. É desumano”, conta Natália.

Humano, o corpo na falta de nutrientes procura as reservas de glicose para repor a energia. Com o estoque de glicose baixo, o organismo então consome as proteínas necessárias para a formação dos músculos e depois usa a gordura para continuar em funcionamento. Se a alimentação for feita de forma errada por um longo período, o estoque fica baixo, podendo prejudicar a recepção da contração muscular e de estímulos nervosos.

“O medo, a busca por abrigo, por alimento, causam muito estresse. Toda a incerteza que a rua proporciona ao ser humano adoece a mente e esses traumas podem ser levados para o resto da vida. Essa situação leva muitos até mesmo a cometer suicídio”, aponta Larissa.

Na noite que tem a trilha sonora de buzinas e xingamentos, Gil folheia seu livro recordando que no início da pandemia da covid-19 a venda de livros aumentou. Mesmo sem ter acesso ao auxílio emergencial pela burocracia, sem ter chance de fazer isolamento social ou de evitar o vírus. Gil Brasil se isola a 8 anos como muitos outros na cidade de São Paulo, sabe que em São Paulo Deus hoje é uma nota de 200 e nos seus 51 anos de muitas barreiras defende o seu “êxtase da liberdade de expressão”.

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